Toda vez que descia
correndo aquela ladeira atrás da igreja para ver se conseguia chegar primeiro
que Mazinho em casa, ela acabava quase batendo na janela da casa de Dona
Glória, daquelas que fica praticamente no meio da rua, pois a calçada era bem
estreita, não tinha recuo, e se abrissem a janela com força, poderiam acertar a
cabeça de alguém. E no embalo que vinha, passava raspando pelo canto da casa de
esquina. Caso estivesse na janela conferindo o movimento, Glória gritava:
-Eita, menina! Que ainda
um dia você se arrebenta toda pelo chão!
Com esse grito, sentia
algo como quem tivesse tomado um fortificante poderoso e disparava pela ruela
plana até chegar perto do rio e virar à direita, passar embaixo do ingá, onde
havia uma trilha estreita, de caber os pés somente, linda, com a relva verde
emoldurando-a e um cheiro forte de mato.
Não tinha jeito. Ele
sempre chegava primeiro. Competiam sempre na saída da escola. Eram vizinhos,
então a chegada era bem na cerca que dividia os terrenos. E mesmo que ela
escolhesse vir por outro caminho, perdia a corrida e tinha que capitular àquele
sorriso largo e sincero, enquanto se entreolhavam de um jeito gostoso. O máximo
que acontecia a seguir era uma despedida tímida, um aceno, um ”até” sufocado na
garganta. Então ela entrava, e a mãe reclamava de alguma coisa, uma dor, um
fastio, a calça rasgada do irmão.
Pendurava na parede do
quarto minúsculo que dividia com os dois irmãos mais velhos, Raimundo e Cícero,
o embornal de brim feito em casa, onde levava seus cadernos. O primeiro nome
foi dado em homenagem a Raimundo Nonato, e o segundo, claro, a Padre Cícero.
Casa de católicos, pois não?
Mais nova que eles, sempre
aceitou com simpatia e desprendimento as duas duras verdades a que fora
submetida: irmã mais nova e mulher. Filha de uma mulher submissa, cresceu
acostumada a ter que agradar o homem na sua plenitude, tendo ficado a parte da
mulher mais adulta para depois do seu casamento, aos dezesseis anos. Até então,
aprendera tudo que fosse preciso para fazer um homem feliz, desde o chão da
casa limpo ao lençol cheirando a alecrim. Mesmo que fosse um tanto primitivo,
como era o pai, que pouco falava e vivia de cara amarrada. Parecia mais um
macaco, coisa assim. Sua fala era povoada de sons guturais, monossilábicos,
sussurrados. As conversas ali aconteciam até que ele pusesse os pés em casa,
para então todos assumirem uma postura resignada de silêncio, esperando para
atender às solicitações do chefe da casa. Falava um pouco mais quando bebia,
mas ainda assim quase perderia para um mudo.Sua mãe conhecia falando bastante,
baixinho e rápido. Olhar ligeiro e riso tímido. Quando falava, franzia o cenho,
parecendo que fosse chorar.
Com onze para doze anos,
quando ficou mocinha quase morreu de susto, pois acordou pela manhã com a
sensação de ter urinado na cama, mas se viu lavada de sangue. Chamou a mãe aos
berros, apavorada, e ao vê-la, acariciou seus longos cabelos negros, e sorrindo
disse:
- Agora tu já é mocinha,
minha filha. Vai se lavar que eu vou te arrumar o pano.
E só então percebeu que
tinha uma dor fina no pé da barriga, que ia durar uns dias, segundo a mãe,
porém ia voltar só no outro mês. A esta altura, suas roupas iam ficando
apertadas, tanto nas ancas quanto no peito, de um jeito que a deixava sem
graça, porque seus irmãos não perdiam a oportunidade de fazer gozação com ela.
Mesmo com isto, percebia que os homens sempre elogiavam seu corpo, seu sorriso
amplo com dentes perfeitos.
Começou a acordar no meio
da noite com sensações indecifráveis, uma aflição, uma gastura que dava nas
partes íntimas, fazendo-a ficar triste e perdida. Tinha vergonha da mãe.
Falasse com ela, poderia passar por doida ou coisa assim.
As corridas da escola até
a casa ainda persistiam, só que Mazinho preferia sempre deixá-la chegar na
frente. Eles passavam muito tempo juntos, e suas mães já traçavam planos
futuros, tanto ali, por cima da cerca, enquanto penduravam a roupa no varal,
como quando voltavam da igreja, aos domingos. Ela sentia por ele um carinho
muito grande, e eram bons amigos.
Tudo ia assim, tranquilo e
sem surpresas, até que um dia surgiu aquele homem numa carreta vermelha enorme
e que havia se perdido pelas estradas do interior. Parou defronte à casa de
Santa, quando a viu no portão com o sol do fim de tarde que lhe acentuava o tom
moreno da pele, destacando seus lábios vermelhos e carnudos. Por um instante
Paulo Afonso ficou hipnotizado, mas tão logo se recobrou, saltou da cabine como
a rapidez de um raio chegando perto dela, a ponto de sentir seu hálito,
fazendo-a recuar, envergonhada.
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