- E eu achando que tinha
perdido a estrada e o dia com meu caminhão... – falou olhando fixo nos olhos da
garota.
Sua mãe, que veio até a
janela com o barulho, estacou preocupada com o que via.
- Que é que foi, hein,
Santa?
- Nada não, mainha, só o
moço aqui que tá perdido.
E quando falou, também
olhando para ele, sentiu que as pernas bambearam e se apoiou na cerca de bambu
pintada de branco, que separava sua casa da rua de terra.
Fugiu de casa com ele dois
meses depois.
E o tempo foi passando...
Desceu do ônibus por volta
de cinco e quarenta da tarde, carregando sua bolsa e duas sacolas de compras. A
esta hora, já com dores nas costas e as pernas queimando, subia as três quadras
a passos lentos, pensando com preguiça na casa por arrumar e janta por fazer.
Seu filho Deivid decerto ainda estava por chegar, com aquele jeito barulhento,
espalhafatoso e todo alegre como ela fora um dia. De sua filha mais velha tinha
poucas notícias, depois que se mudara para Palmas, há uns poucos meses, com o
marido transferido pela empresa onde trabalhava. Sentia muita saudade daquela
que se transformara em sua grande companheira. Desde criança Luana fora muito
apegada a ela. Parecida com o pai fisicamente, era do tipo longilíneo, com
ombros largos, cabelos claros.
Abriu o portão da garagem
e entrou pela sala. Preferia entrar pela cozinha, assim já deixaria as compras
na mesa, no entanto, como os ladrões entraram uma vez por ali, foi colocada uma
travessa de ferro na porta, além de grades nas janelas dos dois quartos e duas
fechaduras na porta por onde entrou. Deixaram a maior bagunça e ainda levaram o
que foi comprado com muito esforço. Paulo Afonso, furioso por natureza, acabou
de arrebentar o que tinha sobrado. Levaram outro tempo longo para recolocar a
casa em ordem. Pelo menos a casa era deles e não tinham aluguel para pagar.
Após colocar uma roupa
mais à vontade, deu uma ordem no quarto do rapaz, que não era bagunceiro,
facilitando sua vida, e foi para o fogão fazer a janta. Gostava de fazer sopa
no jantar. Na verdade gostava mesmo era de cozinhar. Talvez fosse por isto que
o marido engordara tanto desde que fugiram de Muritiba, na Bahia, há trinta
anos. Além do peso que fora uma mudança, surpreendera-se também com um
temperamento difícil, ciumento, possessivo que o deixava cada vez mais
agressivo e indelicado. Bebia demais, não fazia companhia, chegava a casa
fedendo e a obrigava a fazer as coisas que há muito tempo tinha perdido toda e
qualquer vontade, passando mesmo a ter repulsa do marido.
A cada noite, quando
chegava cheirando à bebida e a perfumes estranhos e enjoativos, ela acumulava
seu asco e ia à igreja somente para rezar pedindo a Santo Antônio que a ouvisse
e levasse Paulo Afonso a arrumar outra mulher que o suportasse. Ela mesma se
sentia incapaz de mudar a situação.
A culpa por ter deixado a
casa dos pais sem o seu consentimento, fugindo em pecado, sem casamento a
transformara numa mulher amargurada, cheia de medos e inseguranças. Só teve
noção do tamanho de suas tristezas, quando numa festa de São João, no Largo do
Forró, no bairro de São Miguel Paulista, encontrara ninguém menos que Mazinho
carregando um lindo menino nos ombros, felizes da vida. Apesar de já fazer um
tempo, mantinha a cena viva na memória e a dor pujante no peito.
Surpresos, os dois
deram-se de frente, no meio do público e quase trombaram, já que ele vinha
cantarolando e olhando para cima, como que a pedir que o garoto o acompanhasse
na cantoria, e ela, conduzindo o casal de filhos pelas mãos.
Sem graça, ela olhou para
ele, que imediatamente assumiu uma feição carrancuda de ódio, e falou para os
filhos de um jeito muito tímido e inseguro:
- Meninos, este é um amigo
de infância da mãe.
- Amigo? – perguntou
Mazinho em voz alta, incisivo. Não fez mais do que se virar de costas e ir
embora como veio.
- Amigo, mãe? Que amigo? –
perguntou Deivid, olhando para ela.
- Deixe para lá, filho,
acho que mãe se enganou. Vamos embora, vamos.
Naquele dia, o trajeto do
ônibus parecia muitas vezes mais longo. Ficou estarrecida demais com a reação
do homem que um dia fora seu amigo e só então percebeu o mal que tinha feito a
ele e talvez a si própria. Fez de tudo para segurar o choro, todavia quando
teve a oportunidade desabou na cama e chorou tanto que dormiu exausta nem vendo
o marido chegar. Constatou que estava mesmo ali, longe de onde fugira pela
manhã, quando acordou e se levantou para fazer o café sentindo o cheiro forte
de bebida no quarto, sem contar o chulé e o cheiro de suor.
Há tempos tinha esquecido
de como era humilhante sua situação, e o encontro com aquele homem na noite
passada, deixara-a aos trapos. Enquanto ele tinha se mostrado um homem bonito,
alinhado, forte e com um semblante de calma, o outro, ali deitado como uma
capivara gigante, roncando e fedendo. Não podia imaginar como Paulo Afonso
conseguia sobreviver no seu emprego. “Acho que é porque ninguém sabe como ele
é” – pensou em voz alta - “será que ninguém sente o cheiro?”
Depois desta vez, o
sentimento de culpa em relação aos pais, a saudade da casa deles, dos irmãos,
do cheiro da relva sob o ingazeiro, somaram-se à sua conhecida infelicidade,
endurecendo de vez qualquer traço de alegria que pudesse ter.
E o tempo foi passando,
como a água de um rio calmo, bem devagar, e a falta de perspectiva já nem a
assolava tanto. Sua atitude resignada de pecadora em penitência dava suporte
para que mantivesse uma atitude frente aos filhos e sua casa.
Pediu tanto a Santo
Expedito, cuja igreja fica no Bom Retiro, que um dia achou que tivesse sido
atendida, pois ligaram do Hospital São Paulo dizendo que Paulo Afonso estava no
Pronto-Socorro entre a vida e a morte. De início teve um choque, e a primeira
coisa em que pensou foi na falta de dinheiro, nos filhos, esquecendo-se de seu
trabalho como diarista e do seu filho, que também estava empregado.
Chegou ao Pronto-Socorro e
se deparou com um homem deitado sobre uma maca. Tão grande era que tinha os pés
para fora e, por ser tão gordo, parecia que ia escorregar pelos lados dela. Não
atendia aos chamados, nem se o estapeasse. Mal piscava os olhos. Parecia roncar
acordado, além de ficar imóvel o tempo todo.
Ela e o filho esperaram
mais de três horas até que o médico viesse:
- Ele teve um derrame
grave e estamos esperando uma vaga de UTI para ele. – falou o doutor, de um
jeito educado e acolhedor.
- E como será que ele vai
ficar, doutor? Ele tem chance? – Santa parecia meio passada.
- Só o tempo, senhora. Nós
vamos fazer o melhor, mas temos que esperar para ver como ele vai reagir,
porque a situação é muito delicada. – pediu licença e saiu.
Ficaram os dois, Santa e
Deivid, olhando para aquele corpo sobre a maca, sem saber mais o que falar.
Depois de quase dois meses
e uns vinte quilos mais magro, recebeu alta e chegou em casa de ambulância. Ela
recebeu da prefeitura uma cama hospitalar para poder acomodar Paulo Afonso e
teve a promessa de que, quando ele chegasse em casa, seria visitado por um
médico e uma enfermeira. Foi difícil levá-lo até a cama, e os homens da
ambulância contaram com voluntários da vizinhança. Ela não sabia o que pensar.
Durante o tempo que
antecedeu sua vinda, a casa ficara até um pouco mais alegre, organizada, com ar
mais leve, cheirosa, com astral diferente. A poltrona sebenta, onde ele se
sentava sem camisa foi lavada e até parecia de outra cor. Além do sebo e do
suor, seus cantos e frestas das almofadas foram se acumulando farelos e restos
de comida, até que a partir de um dia Santa se recusara a ficar limpando – “Vai
sujar mesmo... Porco tem que ficar no chiqueiro.” concluiu.
Santa tinha a atitude de
sempre, o mesmo mau humor e a mesma atitude retraída. Ia à igreja regularmente,
mas pouco ou quase nada falava com estranhos. Apesar dos seus quase quarenta e
sete anos, conservava um corpo invejável, torneado e com as ancas largas, que
ainda arrancavam suspiros por onde passasse, no entanto isso já era coisa morta
para ela, e quando se olhava no espelho, pouco observava sua beleza. No máximo
seria: “E daí? Tudo isto pra quê?” – o que era dito com desprezo e rancor.
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