quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
Amarração
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
Carnaval
Estava excitadíssima com a experiência que estava para experimentar.
Já tinha ouvido de amigas que era sensacional. Via pela televisão toda aquela animação, sem contar a beleza e o luxo.
Não era lá um carnaval na Marques de Sapucaí, mas era carnaval no sambódromo em São Paulo. Bem mais respeitado que no passado.
A ponto de sambistas de lá virem sambar aqui. Puxadores de samba de lá idem. O carnaval paulistano, afinal, já vinha sendo bem agitado e com certo glamour, por que não.
O bastante para ser concorrido e desejado por quem não tinha tanta afinidade com samba no asfalto, mas a diversão e a experiência única de desfilar por uma escola justificariam aquele estado de excitação.
Agravado por um fato importante, senão fundamental: a fantasia não fora enviada pela escola até o dia do desfile.
Foram vários telefonemas, promessas não cumpridas, considerações. Enfim, tudo o que pode fazer com que uma mulher, prestes a realizar uma grande vontade, se sentisse ameaçada.
O resultado foi que precisou recorrer ao extremo de ir ao galpão da escola, na região da Penha, buscar a fantasia.
Não sabia para que lado ficava a Penha e muito menos a zona leste, mas, em busca da fantasia de carnaval, tudo valeria.
Era o tipo de mulher bonita, ao redor de seus trinta, trinta e cinco anos, profissional bem sucedida, solteira convicta e autossuficiente. Apesar da aura de autonomia e determinação, por vezes se sentia vítima da sorte insuficiente, de conspirações cósmicas contra suas vontades, coisas do tipo.
E, de fato, quando chegou ao galpão da escola, teve um primeiro choque ao saber que sua fantasia não estava lá. Pagara caro por uma belíssima fantasia com plumas coloridas, paetês, e tudo o mais que se necessite para uma fantasia reluzente e maravilhosa. Sairia num bloco com mais de duzentos integrantes. Sairia. A fantasia desaparecera. Além disto, precisou lidar com pessoas tensas e afobadas. Imagine o galpão de uma escola paulistana de respeito a algumas horas de entrar na avenida. Ainda mais quando aparece por lá uma branquela, que além de bonita, tem razão: cadê a minha fantasia? – não bem aos gritos, mas perto disto.
Gente bufando, senhoras não sabendo o que responder, fato é que puseram na mão da mulher outra fantasia. Provavelmente de alguém que não viera buscar.
Uma fantasia de dinheiro. Uma nota enorme, com apliques dourados, na qual se ficava dentro, só com o rosto para fora, por um buraco. Tinha o dourado. Aqui e ali, mas nem de longe era aquela fantasia maravilhosa que a fizera sonhar em estar na avenida.
Sem alternativas, sem ter a quem recorrer, era o que tinha em mãos e atirou-se com tudo. Houve um esforço adicional do motorista do taxi para conseguir colocar a alegoria no carro, pequeno para a empreitada, mas com jeitinho a fantasia foi para a avenida. Meio dentro, meio fora, a sua dona também, segurando a fantasia, se segurando para ela própria não cair do carro.
Aquela situação, que para outra pessoa qualquer poderia se tornar pura diversão, para ela doía. Tinha fama de pé frio entre os amigos e a família. Ela concordava e propagava até.
No ano anterior, contra a vontade dos pais e apesar de todas as recomendações, ela fora fazer um mergulho noturno no réveillon, com um pessoal experiente, mas ela passou um aperto porque se perdeu do grupo e o ar quase chegou ao fim. Foi resgatada no escuro, em algum lugar da baía de Santos, necessitando partilhar o ar do cilindro da sua dupla.
Em uma viagem pela Capadócia com a mãe, o navegador do balão em que estava, sobrevoando a paradisíaca região, fez um quase pouso e resolveu arremeter sem avisar o homem do solo, que ficou pendurado à corda de amarração e, não tendo forças para suportar ficar tanto tempo assim, soltou-se num voo fatal até o chão, machucando-se gravemente. Ela, sendo médica, acorreu ao incauto, com massagem cardíaca e respiração boca a boca. Havia mais de vinte pessoas nele e quase todos saíram para assistir o socorro. Quase porque ficou um casal no balão. De idosos. Por sorte alguém viu os dois subindo para os céus da Turquia, enquanto a doutora atendia o acidentado. Parte do grupo assistindo, parte correndo atrás da corda que ficara pendurada do balão, com os dois velhinhos em choque.
Na maioria das vezes, levava a coisa no bom humor. Em outras ficava um pouco chateada. Como num feriado prolongado, em que descera para o litoral com o namorado. O namoro estava no início. Na primeira semana. A falta de intimidade da coisa que começa ainda presente, o que deixa o processo até mais gostoso, com todas as descobertas e tal.
Ali entre uma cidade e outra, na Rio-Santos, um enorme barreira se colocou entre ela e o fim de semana. Ficou parada por doze horas. O mistério saboroso do início de namoro se transformou em tédio. Piorado por uma vontade louca de fazer xixi. Que foi no copo descartável mesmo, com ele olhando para o outro lado. O papo que acabou e a chuva que não parava.
Voltando ao delírio carnavalesco, a noite foi inesquecível. Nunca pulara tanto na vida. As bolhas nos pés foram a comprovação material da diversão impar. E também o trabalho todo que teve para levar sua fantasia para casa. Nenhum taxista estava disposto. Talvez tenha conseguido por haverem fantasias maiores circulando no entorno do sambódromo também à procura de condução.
Deixou a fantasia na área de serviço – que ocupou todo o recinto - e foi visitar a mãe na sua terra natal. Não teve a oportunidade de conversar com a empregada – ela morava só. Deixou um bilhete com mil recomendações a respeito da alegoria, dizendo, inclusive, que se sua escola fosse campeã ela, a empregada, poderia usar a fantasia e aproveitar o desfile.
Quando voltou, não encontrou nem fantasia, nem empregada. Só um bilhete:
“Patroa, sua escola perdeu. Foi rebaixada. Joguei a fantasia fora. Beijo.”
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
O voo
Eu sempre me impressiono com esta
estrada. Apesar de tanta gente espalhada por ela, derrubando matas e abrindo
pastos, ela parece resistir nos pontos mais belos e permanece mostrando sua
beleza.
E neste ponto em que estou agora, um
trecho de subida, tenho um prazer especial; aqui parece um cantinho onde a
natureza teve um capricho especial.
Subindo lentamente com meu caminhão,
numa velocidade baixa, por imposição do peso, tenho a oportunidade de admirar
calmamente tudo o que vai se apresentando.
É uma longa subida, de pouco mais de
três quilômetros e reta, de modo a parecer que os carros ficam pequenos até
desaparecerem da minha vista, e na medida em que vão diminuindo, calor próximo
ao asfalto faz com que, além de pequenos, pareçam tremer e dançar na pista.
À direita dela há um corte no barranco
que sobe toda a ladeira, como se tivessem feito um muro que a acompanha,
inclinado e forrado com grama. Entre este arrimo e a pista, uma fileira de
pinus oferecendo sombra a quem precise parar.
No lado esquerdo está guardada a
surpresa – sim, surpresa, pois sempre me surpreendo ao retornar – que surge
logo após um primeiro monte, também cortado pela rodovia, mas este menor em
extensão, e, conforme subo lentamente com meu veículo, observo este lado do
morro descer e revelar ao fundo um vale maravilhoso, paradisíaco.
Eu me pergunto como podem existir ainda
lugares assim, com o homem acabando com tudo à sua volta e bem aqui, à beira da
estrada, que o movimento é intenso, agitado, transpirando pressa e tensão, com
a nítida cara da impaciência, reside um pedaço de paraíso como este.
Logo que o morro termina no lado oposto
da estrada admiro um imenso paredão de granito que forma o lado oposto do vale,
já que contíguo à via está um precipício profundo, que de dentro da boleia não
posso enxergar seu fundo.
A imensa rocha é enegrecida pelo tempo
e seu tamanho assusta ao mesmo tempo em que fascina e hipnotiza. A floresta
parece atingir um terço da sua altura, como se lhe fizesse uma barra verde aos
seus pés e no alto parece haver algo como um pasto, pois daqui do início da
subida, não enxergo o altiplano e isto vai ocorrer quando eu estiver no final
deste trecho, onde se nivelam.
Aquele enorme gavião planando sobre o
vale me dá a sensação de paz e harmonia, pois gira vagarosamente em torno de um
ponto imaginário, descrevendo um grande círculo aproveitando a brisa.
O calor na cabine é sufocante e o
barulho do motor atua como um continuum relaxante me dando a nítida impressão
de que a cada volta aquela ave olha para mim profundamente quando estamos de
frente.
Ela me olha tão profundamente que estou
com a nítida impressão de estar voando agora, planando sobre este vale
maravilhoso. Posso sentir o vento roçando as penas da minha cabeça e com a
visão privilegiada que tenho, percebo nitidamente aquele pequeno córrego lá
embaixo dividindo a mata em duas partes desiguais, mas que se encaixam com
perfeição.
O ar está quente, mas não sufocante.
Está agradável e o que me é curioso é o fato de que, sendo um gavião, continuo
sendo da paz como sempre fui. Como não tenho fome, nem me passa pela cabeça ser
um predador, e acho graça daqueles dois preás brincando sobre a pedra na beira
do córrego. E também os saguis no alto da imensa castanheira.
Sem muito esforço porque o vento suave
me ajuda e de alguma forma estas grandes asas e sua bela pelagem me conduzem –
eu sei perfeitamente voar e sempre soube – agora voo sobre o altiplano e de
fato a vegetação aqui é de um capim alto, já que o gado que nele pasta parece
gostar do capim roçar suas barrigas, pois mastigam vagarosamente parecendo
sorrir discretamente.
É incrível descobrir esta capacidade
para dar um voo rasante sobre aquela pedra enorme que não se imagina existir lá
da estrada e a seguir subir com toda velocidade aproveitando esta corrente de
ar e daí seguir fazendo acrobacias que provocam surpresa naquele outro gavião
pousado no galho da imensa figueira branca. Admira-me a leveza do meu corpo, a
agilidade e o reflexo rápido. Como posso ser tão rápido e certeiro voando
rapidamente por estas árvores, num ziguezague coordenado e consciente? E com
que precisão pouso sobre esta pedra na beira do riacho que avistei do alto e
que, por um capricho da natureza subitamente despenca numa linda queda d'água
que de tão alta faz com que parte dela se transforme numa fina nuvem que assume
infinitas cores sob os raios de sol pairando neste remanso no canto da mata.
Sinto minhas garras ferindo o limbo e
cravando na pedra e minha alegria é tão grande que quero gritar e acho graça ao
perceber meu canto de uma nota só, agudo, a ponto de chamar a atenção daquele
jacu no outro lado da margem.
Ele não se apavora com a minha presença
e acho que ele sabe que não ofereço perigo. Abro as asas me refrescando com o
ar úmido e fresco, sentindo entrar pelas narinas a suavidade do ar puro e
renovador.
Quando nossos olhares se cruzam, sinto
um arrepio forte, mas não me assusto. Agora vejo o gavião sobre a pedra me
olhando com aquele olhar severo, sisudo, pouco antes de tomar impulso, iniciar
seu voo e subir alto até que não o veja mais. Senti vontade de me despedir até,
mas é intrigante o fato de que não tenho vontade também, como se não fosse
preciso.
O que é isto agora, como se fosse um
medo? Um medo que não me apavora? Como pode ser?
Só me faz correr, e correr muito e à
medida que corro o medo passa e percebo que meus pés são fortes e ágeis e
deslizo por entre a mata como um peixe n’água. Minhas pernas foram feitas para
isto e minhas penas, fortes e de cor semelhante à vegetação me dispensam de
voar.
São troncos grossos, finos, caules
delgados de folhagens que balançam quando os roço e percebo que as folhas
caídas no chão, guardam-lhe a umidade fazendo subir uma agradável fragrância de
terra úmida e nutritiva.
A minha visão aqui tem outros
privilégios, percebo, pois nunca imaginei anteriormente tantos pequenos
insetos, larvas e pequenos grãos dispersos no chão como vejo aqui. Um
verdadeiro banquete. Será assim em todo lugar? A vida brota e se diverte com a
minha surpresa. As cores têm uma tonalidade diferente e eu já havia percebido ao
voar sobre o vale, parecendo ter mais vida e ainda alguns tons de azul e verde
que não os conhecia. É hipnotizante mesmo. Passo longos momentos tentando
captar a essência disso tudo, mas vejo inutilidade nesta atitude.
O coração disparado começa a se acalmar
e daqui do chão, com toda esta folhagem por cima, consigo divisar o azul do céu
em alguns pontos e os sons parecem tão diferentes dos que sempre ouvi.
Para ajudar a diminuir o calor abro
minhas asas e as abano sem pressa para me refrescar. Agora elas são menores em
relação ao corpo, pois não preciso voar, e descubro o porquê da penugem sob
elas ser tão fina e com que rapidez a pele desta superfície interna se refresca
me aliviando por inteiro.
Sou capaz de ouvir os mais distantes
sons e precisaria de um bom tempo para reconhecê-los todos, mas sei que não há
urgências nem aflições em nenhuma sombra, em nenhum canto daqui.
Mais perto, aqui bem próximo ouço um
macaco guinchando. Um som alto, mais grave, num ritmo que me lembraria um
latido rápido e repetido, se não fosse aquele macaco prego ali em cima do ingá
me olhando fixamente.
Seu olhar é tão intenso que lhe sinto
penetrar-me a ponto de parecer que agora quem está sobre o galho sou eu.
E de fato estou, pois meu cheiro é
outro, intenso, hormonal, selvagem.
Minhas mãos são fortes e consigo me
manter equilibrado com uma facilidade que achava ter perdido na meninice,
quando subia feito um foguete no pé de tamarindo e de lá só descia quando
estivesse com minha barriga cheia e a boca azeda de dar dó.
Entretanto aqui é muito diferente.
Primeiro por que não tenho a necessidade de comer, depois este equilíbrio
descomunal e a segurança de correr de galho em galho com a vontade que tinha,
mas com a destreza que só tenho agora.
A liberdade que sinto ao disparar por
um longo galho a toda velocidade, rumo ao seu fim e sem querer saber dele e
quando ele acaba eu simplesmente me atiro no ar com braços e pernas abertos, me
divertindo, guinchando como louco e com a certeza que logo ali vai estar outro
galho a me esperar. Agarro a sua extremidade pelas folhas e me deixo balançar e
balançar e guincho mais, como que a gargalhar. A seguir corro em direção ao
tronco para começar outra louca corrida e de árvore em árvore estou vivendo
esta aventura sem par, sem nenhum igual na minha memória.
Agora estou surpreso novamente. Vim
parar na estrada. Estou ao lado dela e me pergunto como consegui subir tão alto
neste jequitibá, mas apesar da altura enorme até o chão, não sinto medo. Estou
bem acomodado e balanço meus pés como uma pessoa feliz.
Aquele caminhão ali embaixo me é
familiar, sim. Eu só não me lembrava de tê-lo deixado, ainda mais assim
capotado e com toda a carga espalhada na estrada.
O rebuliço é grande, com muita gente se
aproximando e tem um homem que está olhando dentro da cabine e me viu.
Será que me viu mesmo? Afinal estou
aqui, mas parece que ele está mexendo em mim lá dentro e grita alto, mas eu não
estou conseguindo escutar. Eu o sinto me tocar, mas não ouço a sua voz, nem
consigo ver seu rosto por que estou aqui. Parece confuso, mas de fato não é. É
simples assim.
Tenho agora a certeza de que aquilo ali
já não me pertence e minha vontade mesmo é tomar o caminho de volta mata
adentro por esta trilha na qual caminho calmamente e novamente os sons daqui me
inundam com o gorjeio dos pássaros e os guinchares de macacos e gaviões. Até o
canto esquisito do jacu eu escuto, parecido com o de uma galinha, e é como se
ele me indicasse que estou no caminho certo.
Como estou descalço, sinto a fina areia
branca do caminho por entre as árvores a agora a luz que se apresenta torna
tudo mais claro e não há sombras. É incrível.
Ladeado por marias-sem-vergonha,
amores-perfeitos e madressilvas não consigo perceber nada que possa me
desagradar, mesmo sem saber onde estou indo. Tudo é paz, harmonia e uma
intensidade de vida jamais experimentada.
E sigo ao som do sem-fim cantando em
algum ponto deste lugar maravilhoso.
É o que tenho a fazer, seguir o caminho. E isto é bom.