O dia amanhecera diferente. Como era o inverno chegando,
parecia que ele estava se anunciando sem receio nenhum de chocar ou paralisar
quem o percebesse.
Coisa de estação que chega assumindo sua hora exata de ali
estar, linda, exuberante, com as cores mais para o prata, como se tivessem um
brilho a mais, mas ao mesmo tempo dando um tom sutilmente mais escuro a todas
as cores.
Aquele tom que define a luz mais fria do inverno.
A temperatura mais baixa o deixou confortável sob o traje
de motociclista.
Saí de casa devagar, curtindo tudo a minha volta, pois era
um dia diferente começando: sair da rotina estafante e passear com os amigos
num lugar maravilhoso.
A rodovia Dom Pedro estava praticamente vazia naquele
domingo e a moto parecia uma rainha passando pelos pátios do palácio.
Em pouco menos de uma hora alcancei o ponto de encontro,
num posto pouco depois da última entrada para Atibaia. Ali eu me reuniria ao
grupo que tocaria até Joanópolis, por uma estrada linda, à beira da represa,
cheia de curvas e lindas paisagens.
Era um grupo de umas quatorze motocicletas e todos com a
animação e camaradagem de sempre.
O líder da turma era um motociclista experiente, com
milhares de quilômetros rodados por todos os cantos e com uma vontade de
dividir com todos tudo o que sabia, o que o colocava na condição de líder
naturalmente.
Deu as instruções do percurso ali no estacionamento,
orientando sobre a necessidade de atenção redobrada quando se está em grupo, as
centenas de curvas que teríamos pela frente e o cuidado redobrado com elas,
pois naquele horário a humidade deixada pelo sereno ainda estaria presente nas
folhas que caíam sobre o asfalto, tornando a pista muito escorregadia.
Qualquer vacilo ou desatenção pode ser fatal.
Os mais afoitos que se cuidassem, mesmo conhecendo a
estrada.
Eu estava totalmente excitado já que era a primeira saída
com a máquina nova, de mil e cem cilindradas, um ronco apaixonante e que
parecia implorar: me acelera!
Além de mim, havia mais dois estreantes, um deles trajando
uma roupa de couro novinha em tons de branco e azul, combinando com seu
capacete também reluzindo a novo. O outro novato estava com uma roupa parecida
com a minha e logo de cara – como fazem alguns novatos – ficamos juntos.
E o da roupa azul foi logo batizado de Jaspion e pareceu
que o apelido só servia para ele, pois era um rapaz bem jovem, nissei e ainda
por cima, aprovou o apelido. Para coroar, os tons de sua roupa eram semelhantes
ao de outro integrante do grupo, só que veterano. E logo alguém disse que
Jaspion era filho dele. Pronto. Estava feito o mote do dia. Zeppa seria o pai
adotivo de Jaspion.
Tomamos o rumo da SP-036, que nos levaria até a cidade de
Joanópolis.
A ida foi tranquila. O pelotão da frente, com os mais
ligeiros desapareceu logo da nossa visão e fomos curtindo as curvas com calma,
mesmo porque as recomendações do nosso capitão – era como o chamávamos –
estavam ali presentes e as folhas molhadas não faltavam no asfalto.
Existe, nestas ocasiões, um diálogo entre os pilotos não
verbal, com pequenos gestos que vão contando para quem está mais atrás, o que
vai pela frente. É um exercício de camaradagem e solidariedade. Avisos de carro
que vem chegando, de buracos, de outros obstáculos, de animais na pista. Enfim,
era como se ficássemos a todo instante colocando nossos colegas a par de
qualquer pequena ameaça à frente.
Quando chegamos ao portal da cidade, o grupo dos mais
rápidos já estava em papo adiantado, todos desmontados das motos e conversando.
As motocicletas foram alinhadas lado-a-lado no acostamento
e as fotos foram feitas.
Após um tempo, como não se conhecia nenhum café na cidade,
provavelmente porque lá não tinha, o grupo tomou a decisão de voltar pela
SP-063, que levava até Bragança Paulista e ali haveria uma parada para o café.
Eu me despedi de todos porque tinha outro compromisso e
tinha horário para voltar. O colega novato como eu, com o qual eu havia
iniciado uma conversa voltou também comigo.
O domingo continuava radiante e o silêncio da paisagem era
quebrado somente pelo ronco dos motores.
Cheguei por volta de meio dia e logo me atirei nas tarefas
previstas para aquele dia, quando lá pelas três ou quatro horas, o capitão me
liga:
- Coisa chata pra te falar, irmão.
- Sério?
- Sério. O Charles sofreu um acidente, velho.
- Quem?
- O Jaspion! Charles, meu. Que nós apelidamos...
- Como assim? Que merda, velho! Nossa!
- O pior de tudo é que eu fui o primeiro a chegar. Eu
pensei que era o Zeppa. Quase morri de aflição. Aí, quando eu retirei o
capacete, vi que era o Charles. Coitadinho, meu. Estava tão orgulhoso da moto
nova. Tinha vinte e um anos.
- Estou passado...
- Lembra o quanto eu falei das curvas? Então. Foi numa
delas. Eu não vi, mas na hora que cheguei no acidente ele estava com a moto
embaixo do carro. Não conseguiu fazer a curva e bateu de frente, mas inclinado,
como se tivesse feito ela muito aberto, sabe?
- Capitão, que merda.
- Nem fale, garoto. Nem fale.
- Pegamos ele vivo ainda, mas estava muito pálido, sabe?
Com todo cuidado levamos para a Santa Casa de Bragança, mas não deu tempo pra
nada. O cara morreu, velho.
Silêncio.
- A única coisa que me consola é que ele estava fazendo
algo que amava muito e aquela alegria toda dele... o orgulho de ter comprado a
moto tão jovem, com recursos próprios, enfim, é isso aí, irmão. Reze por ele.
Quando desligou, eu já estava sentado no chão do quintal e
ali devo ter permanecido um tempo.
Uma tristeza profunda se apossou de mim e pensei em
Charles por longos dias. Rezei por ele. Imaginei a tristeza de seus pais, de
sua namorada. Pensei nos detalhes que depois inevitavelmente toma conta do
assunto entre os amigos.
Pensei nos meus filhos. Pensei na minha vida. Pensei...
Quando dei por mim, muitos dias haviam passado e percebi
que a dor daquela perda marcara meu coração de forma sutil e indelével.
Percebi também que não fizera a barba por muitos dias e
achei por bem deixa-la, propondo-me a cortá-la quando eu tivesse certeza de que
a dor pela morte de Charles tivesse se transformado em saudade somente.
O tempo que se seguiu foi particularmente difícil para
mim, restando como uma época crucial e de fortes e definitivas decisões a serem
tomadas, mas que não são, nem de longe, o que prevalece nestas linhas.
Um belo dia, bem cedo, naqueles segundos que precedem o
acordar e que tudo parece real a ponto de se poder tocar, sentir cheiros e
gostos, ouço um tremendo ronco de motocicleta, daquele jeito que se faz quando
se espera o sinal abrir.
Vejo-me num lugar paradisíaco, com um gramado de um verde
estonteante e margaridinhas espalhadas por todos os cantos. Podia lhes sentir o
perfume naquela manhã do inverno que se anunciava novamente e ao olhar para
onde se originava o barulho da motocicleta, eu vejo Charles, o Jaspion, sobre
sua maravilhosa máquina transbordando de alegria.
Fiquei paralisado, sem conseguir sequer soltar um grunhido
que fosse.
Charles estava ali, diante de mim, com um sorriso
contagiante, me mostrando que estava feliz, onde quer que estivesse e a
serenidade dos seus olhos me mostrou que era hora de transformar a dor em
saudade. A seguir acelerou dando meia volta e rapidamente sumiu na paisagem sem
fim.
Acordei de um sobressalto, ofegante, mas rapidamente fui
tomado de uma alegria imensa e não consegui conter o choro.
Ato contínuo, fui ao banheiro para fazer a barba de um ano
e constatar que Charles se despedira no dia do aniversário de sua passagem.
Sebastião
ResponderExcluirPrazer enorme receber você no meu blog bagunçado e tentando levar mais poesia.
Li seu conto e viajei na garupa dessa moto. É tão gostoso quando as palavras escorregam dos nossos dedos não é? Sutil e indelével... Duas palavras mágicas amigo.
Amei! Bj Y
Gamblers would additionally undergo fewer problems, he says, if digital gaming machines displayed how much they stand to lose on each guess. Margaritaville® Resort Casino Bossier City is home to essentially the most dynamic and thrilling slot action in Louisiana. Our on line casino floor has more than 1,200 of the most well liked|the most popular} and newest slot machines. You'll find the very latest themes and nice odds to ensure you|to make certain you} carry on successful. All of the recommended casinos listed here are|listed under are} reliable sites that hold gamers protected. They respect gambling guidelines and 코인카지노 age restrictions, offering an excellent real money gaming experience in a safe surroundings dedicated to gamers' welfare and safety online.
ResponderExcluir