A mãe tinha sempre a
sensação de coisa nova e parecia estar chegando ali pela primeira vez.
De fato, não podia se recordar.
Um longo tempo já ia
e não conseguia lhe avistar o começo, como a imagem de um imenso dragão chinês
o qual lhe era possível somente avistar a cauda, pois a cabeça adiantava-se a
ponto de já não deixar lembrança da carranca que ostentava.
O quarto, no início,
era assim, um quarto comum. De gente comum. De uma criança comum. Uma cama, uma
mesinha de cabeceira com um pequeno abajur de porcelana e a cúpula branca
adornada com filó da mesma cor e pequenos bordados imitando flores; o guarda
roupas de três portas, antigo, de madeira pesada e puxadores amarelados nos
pontos de contato com as mãos e com azinhavre nos pinos que os fixavam nas
portas. A luminária bem básica, dessas baratas com um bojo branco e o plafon
fosco. No chão um tapete pequeno, que servia para se colocar os pés fora da
cama sem tomar um susto com o chão frio. A janela de madeira, com vidraças e persianas
não menos comuns. O cheiro também, com cheiro de cera recém aplicada e o
armário com cheirinho de sabonete.
Ouvia-se que desde
que iniciara engatinhar pela casa, já juntava coisas e as levava para o seu
quarto. Foi ocupando os espaços de tal modo que de tempos em tempos a mãe tinha
que fazer uma limpa.
Aprendeu, com o
tempo, que não devia guardar restos de comida, papeis de embrulho, tubos vazios
de pasta de dente, caixa de ovos, mas de fato, portava-se como um bichinho
obsessivo, que tudo o que encontrasse fora do lugar seria levado para seu
quarto.
Certo afirmar que com
isto a casa ficou mais em ordem, ou, pelo menos, com quase nada fora de
gavetas, caixas e armários, pois bastava algo à vista para ir parar no infinito
particular de Serginho.
Quando entrou na
escola, sua mãe nutria a esperança de que ele mudaria, deixando de lado aquela
mania de guardar o que lhe viesse pela frente, mas qual.
Com toda a paciência,
em muitas ocasiões o ajudou a organizar a confusão que se formara e o via meio
perdido, com o olhar vago. Aflita, sentava-se ao seu lado e propunha uma
organização, qualquer uma. Ele escutava atento, como que se grudando às
palavras da mãe para esquecer o seu recente problema e então ele esboçava um
sorriso tímido, suspirava. Tá vendo, mãe?
Eu sabia que dava! E ela lhe devolvia o sorriso com espirito aflito. Não
sabia o que ele estava pensando, mas os olhinhos e as mãos pareciam ter voltado
ao seu estado normal.
Em pouco tempo estava
organizando as coisas sistematicamente, em caixas, embrulhos, sacos
resistentes, poderia guardar suas coisas de um jeito mais fácil de saber onde
tudo estava, afinal, era o que parecia ter importância. Saber onde tudo estava,
mesmo que não fosse para seu uso. Importante era saber onde estava. O quê e
onde.
Na adolescência, o
seu grau de organização era tal, que seu pai lhe entregara a guarda de várias
coisas que ele próprio vivia procurando quando era necessário, como uma chave
de fenda ou um recibo do aluguel. Recebera um local no quarto só para suas
coisas. Assim acontecera com seu irmão, que já não habitava o mesmo quarto
havia alguns anos, desde que se mudara para longe e coisas ficaram para trás
que sua mãe não quisera dispor. Ela mesma lhe pediu um cantinho e ali tinha
também algumas quinquilharias inúteis, mas que a faziam se sentir parte daquilo
tudo.
Ele falava cada vez
menos, mas todos ali pareciam entende-lo e curiosamente desde cedo não foi
pressionado a ser mais claro, como se tivessem entendido seu jeito desde
sempre.
A esta altura as
paredes já não eram possíveis de se enxergar e a janela estava emoldurada por
caixas e prateleiras. Sua cama estava num espaço pequeno e apertado. Caixas e
prateleiras a rodeavam e para se chegar nela era necessário fazer duas pequenas
curvas entre tudo o que se amontoava com razoável ordem, por incrível que possa
parecer, além de se ter a sensação de que a distancia percorrida era bem maior
que a real. O estreito corredor acabava nos pés da cama e sua cabeceira ficava
em frente a janela, a uma distancia desta de um metro e meio, mais ou menos, ou
o comprimento de três caixas grandes, ou cinco menores.
Serginho dava tão
pouco trabalho que em algumas ocasiões seus pais se perguntavam quando teria
sido a ultima vez que o viram. Foi hoje pela manhã quando voltou da escola ou
ontem quando foi dormir?
Assustados com tanta
displicência, chegavam a porta do quarto chamando de mansinho e ele sempre
estava por ali - falavam assim baixinho
porque tinham a impressão de que ele estava num lugar mais distante, com a voz abafada
por um longo corredor ou passadiço.
- Você está bem,
filho?
- Você não vem comer?
Em alguns minutos ele
surgia com o mesmo ar tranquilo, sempre tão quieto que tinham dúvidas de que
ele entendesse as coisas, apesar de nunca ter apresentado a menor dificuldade
para aprender. Suas notas escolares e elogios dos professores falavam de algo
oposto ao que receavam.
Desde pequeno ele
agia como se estivesse olhando um mundo à parte. Passava longos momentos
olhando para o vazio e seus olhos se moviam como se estivesse enxergando coisas
que não podia ver também. Ficavam aflitos. Chamavam por ele e até que lhes
voltasse a atenção, parecia relutar em faze-lo, não querendo deixar de olhar ou
atender o que lhe prendia.
Chorava pouco ou
quase nada quando bebê. Não se irritava com facilidade. Sorria sempre. Nunca
ficava doente. Mas faltava alguma coisa. Assim sentiam. Sentiam, mas não
dividiam entre si. Pareciam saber que o outro sabia. Entretanto, esse era um
assunto de pouca fluência e que se esgotava nas primeiras palavras.
Uma coisa que
intrigava o pai era o fato de que, com o passar dos anos, mesmo não
contabilizando com a razão e sim vitimando-a com a complacência paterna que
minimiza e subestima fatos e contas, desde que sejam de filhos, era que tinha
certeza de que tudo o que seu filho carregara para dentro daquele quarto
sobrava em relação ao que de lá saíra. Mas o tempo vai passando e dúvidas
maiores tornam-se menores, o que aflige agora e chega a tirar o sono, logo que
amanhece e vai embora com o dia.
Houve até uma ocasião
em que, tendo chamado o garoto várias vezes sem resposta, chegou até a cama
dele, passando por aquele vão chamado de corredor, e ao chamar mais uma vez,
teve a nítida impressão de que ouvira a resposta dele saindo de uma caixa
maior, que ficava abaixo da janela e podia jurar que havia uma fraca
luminosidade saindo pelas frestas da tampa, mas de pronto desviou o olhar e ao
retornar à mesa do almoço, onde sua mulher os aguardava, simplesmente tomou seu
lugar nada comentando sobre o fato estranho, apesar de, no início do trajeto,
ter imaginado confessar a ela este pequeno desassossego que o acometera.
De fato o filho
preferia ficar por trás das caixas de um dos cantos, que formava um cubículo
escuro e silencioso.
Cria ter adicionado
mais um segredo em relação a esposa. Mais um entre tantos outros que se
acumulam à medida em que a convivência pacífica muitas vezes significa pequenas
omissões e até discretas inverdades. Nada que se iguale a um pecado mortal ou
coisa assim, mas é o suficiente para, aqui e ali, ser tomado por um remorso de
ter perdido oportunidades de dividir o fardo.
Por seu turno, talvez
ela, a mãe e esposa, tivesse mais segredos ainda. Afinal estava ali o dia todo.
Entrava e saía do quarto com mais frequência, inclusive quando ele estava na
escola.
Quando ele era menor,
a mãe mexia nas caixas toda vez em que precisava por uma ordem no quarto, mas
conforme ele foi crescendo e os espaços foram diminuindo no cômodo, ela entrava
com a desculpa da arrumação necessária. A curiosidade a movia. O menino não tinha
saído, pelo menos que o visse. A cama vazia e a janela fechada deixavam
suspensa no ar a pergunta: onde tinha se enfiado?
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