O dia começou como outro qualquer,
exceto que era domingo e isso era o motivo da agitação e alegria. Todos iriam à
cidade, encontrar amigos, parentes, compadres. Falar do que acontecera na roça
durante a semana, o algodão colhido, o milho da safrinha para quebrar, que
ainda a chuva não deixara, o feijão que quase apodrecia na terra úmida.
Os vales da região faziam daquele
lugar lindo e paradisíaco um paraíso para quem chegasse, parecendo uma exceção
na Terra, com encostas verdes descendo ao rio que serpenteava as montanhas. As pedras
de todos os tamanhos salpicavam o terreno.
Gente determinada, pois o que a
beleza esbanjava, o trabalho padecia. Cultivar nas encostas e em meio às pedras
dava àquela gente um jeito especial de se relacionar com as coisas.
Labuta, sacrifício, luta, batalha.
Trabalho ali era os adjetivos que demonstrassem dificuldade e suor. O
substantivo em si pouco dizia. Trabalho era para outros lugares.
Daí a alegria no domingo. Tudo era
festa.
As crianças se agitavam numa
alegria incontida. Dia de vestir a roupa diferente, com sapato de amarrar,
vestido rendado, fitas nos cabelos. A mãe cuidando para os meninos não chegarem
sujos a igreja. Aquela menina que não parava quieta também. O pai olhando em
silêncio, preparando um palheiro.
Aboletam-se todos na F-50 velha, a
cabine predominando em vermelho, pois que carro antigo tinha reposições com
partes que se encontrasse, como uma porta azul e um pára-choques branco. Um
momento de espera de todos, para que o pai conseguisse colocar o motor funcionando.
Das crianças na carroceria
poder-se-ia ouvir seus pequenos corações batendo agitados e chegavam a sentir
cócegas na boca do estomago, tamanha a aflição de se misturar na agitação da
cidade.
Finalmente o motor pega e um ronco
de escapamento furado avisa que a excursão vai começar.
Casa trancada, galinhas no
galinheiro, enfim, as criações, que já haviam sido tratadas, estavam
devidamente presas nos seus criadouros.
A velha caminhonete sai, como que
se esperneando rumo ao primeiro morro, uma íngreme ladeira, mais parecendo um
carreador, da largura do carro, com cascalhos e seixos ali jogados se
misturando à terra vermelha, que de tanta umidade pegava uma cor avinhada.
As correntes presas aos pneus
ajudavam o veiculo ir ganhando terreno, centímetro a centímetro, enquanto as
crianças conversavam sobre alguma coisa muito importante e sua mãe e avó na
cabine olhavam para o topo do morro que já subiam havia mais de duas décadas.
A cada patinada ou pedra que
vencia, era como se ela soltasse um suspiro de alívio, mas na verdade era o
motorista que procurava dar um giro a mais, para lhe dar um fôlego. Essa, pelo
menos, era a sensação, e balançando à beira da encosta, como um paquiderme
preguiçoso, atingiu o alto do morro e ganhou a estrada principal, que levaria à
cidade.
A grota que se avistava dali, com
a casa ainda expelindo a fumaça do café-da-manhã pela chaminé do fogão a lenha,
os animais em torno dela era um quadro reconfortante cada um deles naquele
carro.
Já na estrada, o carro ainda teria
que subir até o alto e então começar a descer, para subir e descer mais três ou
quatro vezes até a cidade. Duas léguas. Pouco menos de uma hora.
No caminho o vizinho com a mulher
iam pela beira da estrada, com uma criança caminhando ao seu lado, de mãos
dadas e outra de colo, coberta por uma manta clara de lã.
Parou ao lado deles. A mulher com
a criança entrou na cabine. A vovó sentou-se no colo da filha e a carona
acomodou-se com a criança junto a porta. O marido se acomodou na caçamba com as
crianças. Muitos bons dias e sorrisos de boas vindas.
Neste ponto a caminhonete era uma
profusão de cores e alegrias, ainda que contidas em discretos sorrisos e
comentários tão discretos, que eram mais guturais.
Na segunda subida, apesar de
estrada vicinal, ela se estreitava demais, suficiente, quando muito, para um
único carro, pois uma pedra enorme não deixara muito para a estrada, que se
afunilava dramaticamente neste ponto. Havia que ser do lugar para passar sem
susto ou atropelo.
A caminhonete chegou rangendo e
dando uns estouros no escapamento e o gás de cozinha adaptado cheirava forte.
Rabeando um pouco, já que não tinha tração nas quatro rodas ela foi chegando ao
ponto: era preciso avançar sem parar para ela não patinar, ao mesmo tempo que
com velocidade mínima, dada a largura escassa da passagem.
O motorista, acostumado com o
caminho, ia dirigindo com a atenção de sempre. Naquele dia a passagem estava
complicada pela chuva que caíra abundante e o barro quase preto se acumulava
desde a pedra, na metade da estrada até sua beirada, para um barranco de altura
suficiente para ser chamada de Pedra do Medo.
Embicou a dianteira em primeira
marcha e vagarosamente avançou até que a carroceria fosse ultrapassando este
ponto. Uma pedra no chão ou uma falha do terreno fizeram com que ela desse uma
pequena rabeada para a esquerda e, ato contínuo, o volante foi direcionado para
o lado oposto, tentando corrigir a trajetória. Quando ela tentou retornar ao
veio do caminho, a carroceria deu uma batida forte na pedra, fazendo com que
ela rabeasse mais forte para o lado do morro.
Acelerando o mais que podia, o
compadre Rolim, como era conhecido, tentou reintroduzir o veículo no seu
caminho, mas ela não conseguia e aos poucos, com o motor em alta rotação,
moveu-se com as duas rodas para o lado, colocando-a de ré para o precipício.
Tentou ainda acelerar mais um
pouco e não conseguindo pisou nos freios de maneira brusca, fazendo com que a
mulher com a criança no colo soltasse um grito curto e não muito alto, e seu
marido imediatamente pulou da carroceria e abriu a porta do passageiro. Ainda
deu uma olhada para o compadre, que não desviou os olhos do volante.
Tirou as outras duas mulheres de
dentro. A caminhonete já ia patinando para trás. As crianças conseguiram pular,
ajudadas pelo empregado que estava com elas. A esta altura todos gritavam para
o compadre, pai e marido saltar, mas ele estava paralisado, co os olhos
vidrados em algum lugar que não parecia deste mundo.
De tanto patinar ela deu meia
volta e capotou uma, duas, três, quatro vezes, ganhando terreno morro abaixo, e
as portas abertas como as asas de um pássaro que cai do céu desgovernadamente.
Os dois homens desceram correndo
pelo caminho de mato quebrado que ela deixou e chegaram lá embaixo,
admirando-se da posição em que ela ficara presa à copa de um grande ingá.
Pela inclinação do morro, chegaram
à cabine com facilidade, vendo que o compadre estava preso às ferragens,
tentando respirar com dificuldade e o sangue escorrendo de sua cabeça e de mais
algum lugar do corpo, que não se identificava onde.
Eles abordaram a situação,
sentindo a gravidade do momento.
Compadre Rolim, que era homem de
poucas palavras, respirava ruidosamente, manifestando uma dor intensa:
- Está todo mundo bem – ele
sussurrou, ao que o homem sinalizou que sim – e o bebezinho também? Que bom,
meu Deus.. Eu não ia me perdoar.
Segurando o volante ele foi
perdendo a consciência até largar as mãos e fechar os olhos.
Os dois homens retiraram os
chapéus respeitosamente e fizeram sinal da cruz.
O dia seguia nublado. O sem-fim
começou a cantar como que anunciando a triste notícia.
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