Um dia, de tanto se
fazer essa pergunta, pegou-se abrindo discretamente caixas e caixas, fazia de
uma forma delicada, como que evitando barulho para não se denunciar. Abriu a
maior, abaixo da janela, que ficava com a tampa dobrável sempre solta, mas o
que viu foi uma porção de pequenas coisas guardadas, como brinquedos de montar,
carrinhos, alguns livros de contos infantis. Havia uma pequena luz no fundo? Como se uma pequena lanterna tivesse
caído por entre os objetos? Devo estar louca mesmo...
Passou para outra
caixa, na lateral da cama, meio metro acima do nível do colchão. Ela ficava
encaixada de forma a deixar para fora quase sua metade, permitindo levantar
meia tampa e foi o que fez: gibis de Walt Disney até em cima sem espaços
livres. Voltou-se para o guarda roupas e o abriu. Tudo arrumado; nada fora do
lugar. Teve a vontade, e o fez, de deslocar as roupas penduradas e ver que a
tampa posterior do armário estava ali. Riu de si mesma achando-se tola ao
pensar que por ali seu filho entrasse em algum lugar secreto.
Bem mais ousada que
seu marido, chamou pelo garoto em frente a caixa e ao guarda roupas. Posicionou
a cabeça de lado, apurando o ouvido.
Ao fazer isso e se
voltar para a cama, que ficava na mesma direção da janela, quase morreu de
susto ao ver o filho do lado de fora dela, olhando-a pela vidraça. Tinha aquela
expressão de sempre no rosto, deixando-a com a face pegando fogo, como se
tivesse sido flagrada num grave delito, apesar de o olhar dele não parecer
focá-la diretamente.
Disfarçou ralhando:
- Quase me mata de
susto, moleque! Onde você estava? Nem vi sair? Saiu por onde? – falou
apressadamente e saiu com a mesma velocidade, dispensando as respostas. Tanta
coisa pra eu fazer e vou ficar aqui me preocupando com esse moleque. Verdade é
que raramente perdia a paciência com ele.
Passava de um estado
a outro – da curiosidade extrema ao evita-la a qualquer custo – em segundos. No
fim a possuía uma frustração que surgia lá no fundo e ficava martelando; uma
dor latejante e fina, um pensamento doído, incômodo e ao mesmo tempo tênue o
bastante para não lhe tirar dos afazeres. Cheio de segredos esse menino. Ai,
meu Deus, que ele não me venha com esquisitices. Será que é louco como meu pai
foi? Mas ele não come flor nem conversa com passarinho, que nem fazia o velho.
Fica tão quieto o tempo todo. O velho não ficava.
Quando foi para
nascer, a criança levou quase um dia e uma noite para sair e respirar o ar do
mundo e ainda assim, depois de nascido levou mais uns minutos até soltar aquele
choro fraco e cansado, como se estivesse implorando em soluços para o deixarem
dormir.
Andou rápido, aos
oito meses, mas foi falar para lá dos três anos, e muito pouco ou quase nada.
Frases curtas,
objetivas, economizando o verbo, como se as palavras custassem fortuna para
sair. Falava em tom baixo, quase desaparecendo a voz antes do final. Parecia
tão distraído o tempo todo que tinha de se oferecer tudo. Comida, água, suco,
doce, bolacha, salgadinho. Comia com gosto, mas não sentia falta. O olhar vago.
Não era um olhar morto ou triste ou de quem está perdido. Era indiferente sem
ser, pois prestava atenção no nada. Não parecia estar seguindo alguém que não
existia, mas também não olhava as coisas que todos olhavam. Algo assim,
estranho e incomum, misturado com o corriqueiro e banal.
Brincava o tempo
todo, emitindo ruídos baixos, ora imitando o motor de um carro, ora evocando os
sons de um rifle de assalto, de cavalos relinchando. Ficava assim um dia
inteiro se o deixasse.
Não era aquela
criança que se entusiasma com as novidades. Sempre que se deparava com algo
novo assumia aquele olhar, percorrendo lentamente todos os quadrantes, como que
analisando desde a superfície até seus planos mais profundos, tentando, pela
forma depreender o que viria no conteúdo.
Um dia o pai apareceu
com um lindo cãozinho, ativo, brincalhão, com energia para deixar a casa de
ponta cabeça se lhe fosse permitido. A esposa achou ruim, que seria mais
trabalho para ela e ninguém iria dar a mínima.
O garoto ficou
boquiaberto, parado junto ao tapete da sala vendo o cãozinho rodopiar, latir
desafinadamente, correr atrás do próprio rabo, tudo numa velocidade estonteante
e que parecia não tomar conhecimento de quem estava ao redor, até que descobriu
o menino. Latiu, abanou o rabo, e como era bem desengonçado, ficou requebrando
mais que o normal até cair sentado sobre uma das patas traseiras e ato contínuo
partiu para os pés do garoto que, imóvel, observava a cena. Mordeu rosnando,
pegou o cadarço e puxou até que, fazendo soltar o laço de repente, caiu para
trás e soltou um pequeno gemido de desapontamento. A seguir ficou de barriga
para cima, olhando seu novo dono de soslaio.
O garoto olhou para o
pai, que o observava em silencio e acenou afirmativamente com a cabeça,
indicando que era um presente.
Ele se sentou no
tapete e desde aquele instante o animal parecia entender o garoto. Não se
desgrudaram mais e quase um ano depois era daquele jeito intenso como havia
começado.
Um dia quando chegou
na escola no final da tarde não foi recebido pelo seu amigo de pelos como era o
usual. Não procurou fora da casa; o cão nunca saía sem ele. Foi até o quarto e
ao colocar o material escolar sobre a cama ouviu um latido distante. Pulou para
junto da janela olhando no quintal. Ouviu outro latido abafado, que parecia vir
do canto do quarto. O canto à direita da janela, que fazia angulo com a parede
da porta. Mais uma vez o chamado parecia sair por entre as caixas. Não poderia
ter entrado por um vão, pois vão não havia, pegou a lanterna e iluminando por
entre as frestas esperava localizá-lo.
O mais curioso é que
o latido não era de um cão aflito ou em perigo. O danadinho devia estar
brincando, mas como? Sem ele? Simplesmente estava em algum lugar sem ele e
brincando. A pontinha de ciúmes que sentiu era inusitada e lhe causou grande
desconforto.
Pegou uma escada
pequena que ficava atrás da porta e o permitia alcançar as caixas mais altas.
Subiu usando ainda a lanterna, porque apesar de ser dia claro lá fora, seu
quarto já estava mais acostumado à penumbra.
Por ali não teria
acesso. Desceu e se sentou a cama, pensando no trabalho que seria tirar caixa
por caixa para alcançar o amigo. E dali, mergulhado em pensamentos, fixou o
olhar na caixa que estava no rés do chão, a que tinha umas seis ou sete sobre
ela. Parecia ouvir os passos apressados dele roçando o papelão. Não era
possível. Reparou também que a caixa sob a janela, a grande, tinha uma das
folhas aberta.
Ele abriu as outras.
Os brinquedos estavam desarrumados e pareciam estar assim até o fundo. Foi
retirando os de cima e colocando sobre a cama. E mais outros. Alguns livros
infantis, uma bola de couro murcha, um carrinho de rolimã em miniatura. Como de
hábito, à medida em que retirava cada objeto de dentro, lembranças a ele
associadas vinham à sua mente como um filme e com imagens nítidas e coloridas.
Já tirara um monte e ainda parecia haver mais. Havia colocado tantos assim? A
caixa foi ficando mais funda, parecendo estar o seu fundo abaixo do nível do
chão. Achou engraçado. Já estava precisando segurar com uma das mãos na borda
da caixa, tal a sua profundidade.
Quase morreu de susto
quando o latido lhe atingiu os ouvidos como um raio. Alto a ponto de parecer
que ele sentia a respiração do animal junto ao seu corpo. Descobriu de repente
que era real e não uma simples impressão. O cão chegou ao seu lado e começou a
lhe lamber as orelhas. Ele segurava uma caixa com as duas mãos, estava quase de
ponta cabeça dentro da caixa e agora era lambido na orelha. Protestou pedindo
calma ao amigo e assim que falou ele saiu correndo voltando a latir de longe.
Chamou por ele espantado com o que parecia ser um corredor, forçou a visão,
esticou o mais que pode o pescoço sem largar a caixa e o que aconteceu foi que
ele desabou dentro da caixa. Assustado, percebeu que não estava machucado nem
sentindo dor alguma. Os olhos foram se acostumando com aquela luz que parecia fraca,
mas lhe possibilitava ver tudo. Haviam corredores com brinquedos de toda a
espécie formando as paredes, como se fossem prateleiras, reconhecia os objetos,
vendo que eram de outras caixas e ali pareciam estar todos num único
recipiente. Um grande depósito. Admirou-se com a ordem. A que ele gostaria que
tivessem os das caixas. Mas eram os mesmos, então estavam arrumados.
Voltou ao ponto da
entrada, olhou para cima e teve e impressão de que ele próprio estava menor.
Claro! Senão como você ia caber aqui dentro? Satisfez-se com a resposta e saiu
em busca do cachorro que a esta altura latia no lado oposto. Foi atravessando
os corredores não menos espantado com a quantidade de coisas que havia,
parecendo uma imensa loja e não havia ninguém. De gente, ninguém.
Pareceu-lhe ouvir a
voz da mãe chamando lá no quarto. Achou melhor ficar quieto para não se
denunciar. Sentia assim, apesar de não ter feito nada de errado, supunha, mas
quando a mãe chama tem que responder logo.
Ela, ao entrar no
quarto viu alguns brinquedos sobre a cama e a caixa aberta. Buscou o quintal
através da vidraça, concluindo que seu filho já devia ter encontrado o cãozinho
e estaria brincando lá fora. Retornou aos seus afazeres.
Avançando pelo
corredor, o garoto passou para um ambiente parecido com o quintal da casa,
onde, sobre a grama verde seu cão corria de um lado a outro, latindo e
resfolegando sem parar. Parecia estar se divertindo muito. Apesar de muito
claro, não identificou o sol e logo notou que não havia sombras. Olhando para cima,
sabia exatamente onde estava. Ora embaixo do seu próprio quarto, ora abaixo da
cozinha e assim por diante. O mais intrigante era que não via as coisas por
baixo. Só sabia que estavam acima de sua cabeça.
Ouviu a mãe gritando,
reconhecendo a voz que entrava pela caixa. E chegava aos seus ouvidos como se
ouvisse através de uma parede, nítido e abafado.
Não tinha vontade de
regressar. Ali estava quieto e lhe dava uma sensação confortável de aconchego e
sossego. Deixou-se sentar na grama macia e seus olhos perderam-se no horizonte,
que ficava lá onde a vista se perdia e ainda assim parecia tão perto. Tudo,
aliás, tinha esta aparência ou sensação de longe e perto. Como se estivesse
contido na caixa ao mesmo tempo em que vislumbrava a amplitude daquela paisagem.
Sua mente de menino
não se intrigou nada com o fato de ali não haver nenhum som da cidade, pelo
contrário. Nem tampouco o canto dos pássaros ou o som do vento. Parecia mesmo
estar num estúdio, onde o ambiente à prova de som pode, para uns, trazer tranquilidade,
ao passo que para outros pode passar algo de claustrofóbico. Ele estava com a
primeira, sentia um bem estar; parecia ter encontrado o seu lugar.
Não fosse seu amigo
cachorro, estaria lá no quarto como todo dia. Aqui podia colocar, como estava
fazendo agora, todos os brinquedos e objetos guardados nas caixas sobre o
gramado e a cada peça que pegava, lembrava nitidamente do instante em que a
conquistara, fosse simplesmente pegando para si por estar abandonada, fosse um
presente de alguém que quisesse agradar.
Achava incrível,
divertido. Seria capaz de dizer que roupas estavam usando as pessoas que
estavam presentes quando havia ganhado algo. Assim, por exemplo, quando ganhou
este pequeno caminhão betoneira de cor vermelha e laranja. O pai estava com aquele
terno cinza claro, a camisa branca e a gravata azul marinho que
usava sempre às segundas-feiras; a mãe com o vestido vermelho e pequenas flores
brancas e por fim a amiga dela, que usava a camiseta amarela bem apertada –
decerto pra segurar os peitos grandes – e a calça jeans que nunca deixava seu
corpo. O vasinho de margaridas murchas no armário da copa.
Um tempo depois de
ter ido ao quarto, ouviu os latidos no lado de fora e saindo para o quintal viu
seu filho sentado, com o olhar vago de sempre, sob a jabuticabeira, num banco
de madeira que ali ficava. E o cãozinho correndo como louco. Disparava pelo
quintal dando duas ou três voltas beirando o muro e depois pela lateral da
casa, voltado para o lado do garoto. Enfiava-se entre seus braços, imóveis,
estimulando algum carinho. Esfregava a cabeça no seu peito, lambia seu rosto,
latia.
Como que a muito
custo, sem desviar o olhar do nada, o menino esboçava um afago, passando
vagarosamente a mão na cabeça do animalzinho, que resfolegava feliz, com a
língua de fora. Parecia mesmo estar feliz e grato lambia a mão do amigo.
Sua mãe chegou até
ele, acariciou seus cabelos:
- Ah, meu filho
querido, por onde você anda, hein? Está tudo bem? Acho que sim – e beijando-o
voltou para a sua rotina.
Ouviu
mais uma vez a voz da mãe entrando pela caixa, mas percebeu que ela não estava
aborrecida: que bom... vou poder brincar
mais um pouco.