segunda-feira, 11 de julho de 2016

Suspeito por atitude suspeita

Quando ele poderia imaginar uma coisa dessas?

Nunca! Nunquinha da silva! – pensou com a convicção forte o bastante para arrancar-lhe um gemido.

Olhou pela fresta da persiana da janela da sala: sol alto, as pessoas cuidando da vida. E ele ali, de cueca, segurando as roupas nas mãos, ainda assonado, e sem saber como escapar sem ser percebido.

Sempre que ia à casa da amante, chegava tarde e saía bem cedo, antes de qualquer um estar saindo para o trabalho.

Justo naquele dia, perdera a hora e, como um verdadeiro preguiçoso, dormira até quase a hora do almoço.

O celular sem bateria não tocara no horário certo e sua amada saíra no horário de costume para trabalhar, de modo que acordara com um barulho de buzina.

Como faria agora para sair sem ser reconhecido? E como justificaria a falta ao trabalho? E como... - Dá um tempo, cara! Deixe, pelo menos, que eu acorde! – disse a si mesmo em tom severo.

De tênis, bermuda e camiseta regata não conseguiria andar cem metros sem ser reconhecido, evidentemente.

Certo que ela já estava viúva há um tempo e ele era solteiro, mas ainda não se sentia suficientemente amadurecido na relação – como em todas as outras, talvez. Foi até o baú do viúvo, que ficava num quartinho nos fundos e o revirou.

Fez uma pescaria e conseguiu montar um disfarce. Podia até não combinar muito, mas estava legal: uma calça de poliéster clara, uma blusa de moletom com capuz, até um par de óculos escuros encontrou.

Saiu sorrateiramente pelo portão lateral em passo acelerado rumo ao metrô.

Havia uma grande agitação na rua em função do jogo do Brasil que abriria a disputa de futebol na Olimpíada, e teve isto como um facilitador.

Como a estação ficava a menos de duas quadras da casa de onde acabara de sair, rapidamente alcançou a escada rolante que o levaria para a plataforma de embarque.

Sentiu-se mais seguro já loa embaixo, com o capuz ainda puxado sobre a cabeça, apesar do imenso calor, mas nada abalava seu bem-estar. Estava protegido. Mais um pouco ele poderia ficar mais à vontade.

Entrou no trem e sentou-se no fundo do carro, distribuindo rápidos olhares na tentativa de identificar algum rosto conhecido e não reconheceu ninguém.

Tinha colocado seus tênis e a roupa numa mochila, mas como ela ficara muito vazia, achou por bem colocar mais algumas roupas para fazer volume. Jogou uma maçã também, que iria come no caminho.

Foi pensando justamente na fruta, fazendo o movimento de remexer na mochila, que foi brutalmente agarrado nas mãos e pescoço e teve sua cabeça socada contra a parede.

Começou uma gritaria dentro do trem, e os quatro brutamontes se identificando como policiais pediam que todos ficassem exatamente onde estavam e que tudo estava bem.

- Como bem? – uma senhora perguntou e teve um cano de metralhadora encostado na sua cabeça e ouviu a seguir que fizesse o favor de ficar calada, pois estava em curso uma ação antiterrorista.
Tonto e com uma dor de cabeça violenta, ele tentava entender o que tinha feito, mas de nada adiantava porque lhe apertavam a garganta de um modo que mal conseguia falar, que diria então falar.

Deitaram-no de bruços e o algemaram. A mochila foi pega delicadamente e assim que o trem parou, foi colocada no chão, num ponto isolado da plataforma, para que o esquadrão antibombas providenciassem a verificação.

Ele saiu da estação carregado pelos homens das forças de segurança e levado para as dependências da polícia federal.

Mais tarde, dois homens que estavam no mesmo vagão onde fora detido o suposto terrorista, assistiam aliviados o noticiário num boteco qualquer. Tinham camisas do time adversário do Brasil e portavam-se como verdadeiros turistas. Riam-se e cochichavam felizes, olhando a tevê, enquanto o repórter informava sobre a prisão de um suspeito no metrô do Rio que não era tão suspeito assim e as autoridades, publicamente, pediam desculpas.

Os dois tinham passaportes falsos e levavam bombas nas suas malas.


Vestiam-se como pessoas normais e não tinham comportamento suspeito.


quinta-feira, 7 de julho de 2016

Promessa

Senti o ar sufocante. Cheiro de gente suada, amanhecida. Cheiro de tensão e medo no ar. Eu respirava com medo. O medo.
Me conduziam pelos braços. Eu não opunha resistência, mas ainda assim me apertavam, não a ponto de doer. Só para eu saber que estava sendo conduzido. Que não me esquecesse.
Fui levado escada acima. As pessoas se exprimiam e, à medida em que eu ia passando, me olhavam nos olhos. Cobrando, condoendo, desprezando.
O terror foi se apossando de mim e eu não queira chegar até onde me conduziam. Minhas pernas foram enfraquecendo, ao mesmo tempo que as mãos que me sustentavam, empurravam meu corpo adiante.
O murmúrio que era alto quando cheguei se transformara em silêncio. Ouvia o som da respiração, hálitos de boca dormida, de boca amanhecida, de cigarro, de cachaça.
Ela jazia sobre a cama de casal e o sangue empapava os lençóis.
Entrei em pânico. Apesar de eu ter certeza de que aquilo nada tinha a ver comigo, comecei a me perguntar o que eu teria feito.
Tudo claro. Ela estava morta sobre a cama. Os olhos entreabertos, a boca discretamente aberta e um fio de saliva que escorreu pelo canto da boca, se transformara num fio branco.
Gritei. Berrei. Urrei. Perguntando aos brados de desespero o que tinha acontecido e ela da cama me olhava com olhar de censura.
E quanto mais eu gritava, mais ela me fitava e perguntava porque eu tinha feito aquilo, como tinha sido capaz daquilo.
Agora, ajoelhado ao lado do seu corpo eu lhe dizia que nada tinha feito, que de jeito nenhum, que eu a amava, que jamais eu sequer tinha pensado em erguer um dedo; nunca; impossível.
Acordei suado e o quarto me sufocava.
A imagem daquele corpo tão belo e cheio de vida, jazendo na cama do hotel não me deixaria jamais.

 Quando Oscar bateu à porta e eu abri, me deparei com um homem destruído. Ele não precisou falar nada para que eu visse a destruição. Segurando o velho chapéu de feltro com as duas mãos, olhou-me de soslaio e cabisbaixo dirigiu-se à poltrona da sala e deixou-se desabar.
Fiquei esperando; senti que era grave, mas não fazia ideia do que poderia ser.
Ele era um homem enorme, falante, loiro e de olhos azuis, com um sotaque carregado. Delegado Oscar. Assumira o cargo muito antes da minha chegada.
Quando, de voz embargada, me disse que eu teria de ir com ele para fazer um exame cadavérico eu me sentei no sofá. Minhas pernas amoleceram.
- É doutorzinho, hoje é o cadáver da minha princesa que precisa do seu exame. – tinha os olhos vermelhos e as pálpebras inchadas. Suas mãos tremiam.
A exclamação que soltei me assustou e quase não consegui controlar os meus tremores. Tive uma violenta náusea e meus intestinos deram nós que me queimavam a barriga.
Naquele exato momento eu tive noção do quanto longe de tudo e de todos eu tinha ido parar. Até então me orgulhava de ser o único médico da cidade, querido por todos, ainda que com alguma desconfiança.
O pequeno hotel de dois andares, feito em madeira e pintado com uma cor entre marrom e vermelho, destacava-se na paisagem da pequena cidade. Pertencia a Oscar e seus quatro filhos tocavam o negócio.
Duas filhas e dois rapazes, sendo Marcia a mais nova.
Marcia tivera um casamento conturbado, pois seu marido era doente de ciúmes.
Oscar, que era um sujeito de pavio curto, sem muita paciência para conversa, passara por um purgatório, ao se conter para não quebrar uns ossos do genro, quando este maltratava sua princesa.
Até que um dia, em meio a uma discussão, Marcia levou um soco no rosto, momentos antes do seu pai cruzar a porta da entrada do hotel. Ao se deparar com a filha chorando baixinho, caída ao lado de uma das mesas do refeitório, ele foi até ela e a pegou ternamente pelos braços, sentou-a numa das cadeiras e lhe disse baixinho o que ia acontecer.
Pegou o rapaz pelo colarinho e o puxou até a porta de entrada, uma porta comum, que tinha uma escada de três degraus até o nível da rua, que era de terra e não tinha calçada. Foi atirado como num desenho animado e voou até o chão de terra vermelha, levantando uma nuvem de pó vermelho quando bateu no chão.
A cidade acompanhou à distância e em silêncio, constatando algo que muitos já se surpreendiam de ainda não ter acontecido.
Ele ficou ali, atordoado, enquanto alguns amigos de bar se aproximavam, para tentar coloca-lo em pé e leva-lo dali. Poucos minutos depois voaram pelo mesmo trajeto duas malas que se abriram ao bater no chão.
Nestor foi embora da cidade no mesmo dia, sem deixar rastro.
Quando cheguei no lugar e assumi o posto no pequeno hospital, esta história já não rendia comentários e a ouvi numa tarde de sábado em que fora convidado a participar de uma mesa de baralho, o que acabou se tornando um hábito e quebrou o gelo com os locais. Ouvi do próprio Oscar.
De início eu corei como um peru, porque sempre que podia eu me aproximava discretamente dela, já que parecia ter recíproca na minha atitude.
Num baile ela me ensinou a dançar as danças típicas do sul e no final da noite nos despedimos formalmente, já que os irmãos não desgrudavam, mas tudo na maior cordialidade.
Ainda levou algumas semanas para eu começar a me aproximar novamente. Ela ajudava a servir, cozinhava, arrumava os quartos, dava ordem aos empregados.
Eu começara a sonhar com ela, de olhos abertos.
Tinha a pele morena e firme, seios arredondados e empinados, cintura fina e coxas roliças, bem torneadas. Não havia nada igual naquele fim de mundo. Uma beleza típica, genuína. Um sorriso cativante, sensual. A voz baixa e meio rouca. Olhos pretos.
Eu acordava suado e as noites pareciam intermináveis.
Numa ocasião, pouco depois da meia noite, Oscar me buscou em casa para atender um ferido no hospital, resultado de uma briga de faca na zona de meretrício, que ficava nos arredores da cidade, numa distancia em que não cansasse muito a freguesia para chegar lá, mas suficientemente distante para desestimular qualquer esposa cismada que, por ventura, quisesse dar algum flagrante.
Saí do hospital perto das duas horas da madrugada, morto de fome e Oscar parece ter adivinhado. Parou diante do hotel e me convidou para entrar, dizendo que tinha pão feito em casa e carne assada com batatas.
Entramos na cozinha e o fogão de lenha ainda guardava algum calor.
Quando começamos a comer ela entrou no refeitório. O pai se surpreendeu, mas ela disse que tinha ouvido barulho e só viera saber que tinha chegado.
Estava linda, com os cabelos longos algo desgrenhados, mas que não conseguiam ficar desarrumados por muito tempo porque eram muito lisos e logo se alinhavam, trajava uma calça de algodão e uma camiseta folgada. Estava sem sutiã, e seus mamilos brincavam de aparecer sob o tecido delicado.
Mal consegui terminar meu lanche e me despedi, tomando o rumo da rua. Ela me acompanhou para trancar a porta e pude sentir aquele seu cheiro de pele adocicado, misturado com uma lavanda qualquer e não consegui falar nada além de um boa noite. Ela me reteve por uns instantes, na pequena antessala que separava a grande sala de jantar da porta.
Eu não tive muito tempo. Ela me segurou o antebraço e ficando na ponta dos pés me beijou na boca suavemente, seus lábios úmidos e carnosos não me dando tempo de pensar, roubando minha respiração, tirando meus pés do chão. Minha cabeça suspensa em alguma nuvem distante e meu coração batendo sem compasso, parecendo pular do peito.
Quando ela me soltou, abri os olhos e vi um sorriso que até então desconhecia. O desejo estampado na pele. Eu não sabia o que fazer. Ela me virou na direção da rua me desejando boa-noite como uma boa menina.
Fui para casa tropeçando na felicidade e como que respirando pétalas de flores coloridas a iluminarem a madrugada.
Demorou para que o dia chegasse. Mantínhamos tudo em segredo. Nossos flertes, trocas de olhar, suspiros. Quando finalmente tivemos oportunidade, mal tivemos tempo de falar. Na verdade fomos falar alguma coisa após nosso cansaço não permitir mais que isso: falar. Eu tinha me encontrado. Estava no meu oásis. A caminhada havia cessado, a busca chegara ao fim.
Naquele domingo a cidade estava toda reunida em torno da igreja, festejando São Sebastião, padroeiro da cidade.
Fui para casa esperando que ninguém tivesse visto e ela chegou instantes depois.
Combinamos de voltar também separados. Ela saiu primeiro. Dei alguns minutos e saí também. Me infiltrei na multidão procurando por ela e a vi ao lado do pai, pálida e trêmula. Tivessem descoberto alguma coisa eu já a pediria em casamento ali mesmo. Eu estava feliz e não conseguia esconder, enquanto ela me olhava aterrorizada, até que percebi que me sinalizava para olhar no rumo de uma porta lateral da igreja, e lá estava um desconhecido, impassível e me encarando. Olhava com ódio para mim. Deduzi que só podia ser o tal Nestor. Cheio de confiança, fui em direção a ela e ao pai, ao que ela veio ao meu encontro e me suplicou para ficar quieto, na minha, pois eu não fazia ideia de quem era seu ex-marido. Estava de fato apavorada e não fui sensível para perceber.
Ele a viu saindo de minha casa e a interpelou sem dizer palavra. Só obstruiu sua passagem e depois disso, deu-lhe as costas e voltou para a festa.
Naquela noite foi assassinada.

Agora aquele homem destruído pela tristeza e pela culpa de não ter conseguido proteger a filha me olhava com desespero. Tinha o sangue da vingança nas mãos, Nestor também estava morto a poucos metros do hotel. Mas seu desespero maior era o de saber que a vingança de nada servia. Marcia não voltaria mais.
A culpa se apossou de mim. Eu era o responsável pela morte dela e esperei do fundo da minha alma que agora ele me matasse também. Tive certeza, pois o cano de seu revolver ainda fumegava, e eu podia sentir. E seu olhar misturava ódio com tristeza.
Fiquei sentado, esperando.
Ao cabo de alguns minutos ele se levantou e senti um frio na espinha, mas o que ouvi foi:
- Sinto muito fazer o doutorzinho passar por isso. Pensei que fosse virar o meu genro. Eu via vocês dois apaixonadinhos, doutor e só me dava alegria. Mas essa vida é malvada, doutor... Vamos lá trabalhar, vamos.

Colocou o chapéu e saiu com passo firme, esperando que o seguisse.

sábado, 2 de julho de 2016

Memória de menino

A gente quando é criança guarda coisas que assumem imagens, formas, sons que ficam, às vezes, impregnados para sempre, recorrendo aqui e ali sem maiores motivos, mas com intensidade de coisa real e acontecida.
Ainda garoto, minha avó me contava uma históriaeu sempre pedia que ela me contasse de novode um irmão que ela perdera ainda criança, vítima de tétano.
O garoto estava doente fazia dias, cada vez pior, apenas aguardando que os anjinhos do céu lhe viessem buscar e a tristeza rondava a casa do sítio onde moravam.
Faço conta que até a fumaça do fogão a lenha saía da chaminé com má vontade. Um garoto de dez anos, com a idade que eu próprio tinha quando ouvi pela primeira vez este caso, com uma doença que o levaria à morte, faria tudo em volta ficar triste. Imagino a bisa chorando, inconformada com a sina de perder um filho tão jovem, o nono amuado, consolando os outros filhos, acolhendo o apoio dos vizinhos de bom grado.
Uma doença severa e letal, que acomete sua vítima com dores terríveis causadas por contrações musculares involuntárias, às vezes tão fortes que fazem fraturar ossos do corpo somente por sua força.
Ela contava que ele adorava melancia, e num dos poucos momentos em que conseguira falar, revelara a mãe este último desejo.
Sabendo disto, um tio e um irmão mais velho selaram as montarias e saíram em busca da fruta, enquanto quem ficara, rezava para que o pequeno conseguisse ter seu desejo realizado.
Dois dias se passaram com a febre e as crises de dor torturando o menino até que finalmente eles retornaram com a fruta no embornal, após vasculharem todas as roças da região, já que não era o tempo dela ainda.
Toda vez que me contava, ela se emocionava com o retorno dos homens com a fruta, como se fossem heróis. Os que realizaram o ultimo desejo, algo assim.
Mais que depressa a nona pegou a pequena melancia, uma pequena e desbotada fruta temporã, que por obra de Deus estava lá num canto da grota esperando ser encontrada, partiu-a e colocou seus pedaços num pano limpo e a espremeu, fazendo um suco.
Com paciência de mãe, a nona foi dando o suco às colheradas ao garoto enfermo que, apesar da gravidade da doença, dos espasmos terríveis, tomou o suficiente para saciar a vontade e acalmar seu espírito.
As dores e o sofrimento o deixaram no fim da tarde. Morreu em paz, sem vontade de melancia.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Quase ida


Era uma noite de abril de céu limpo, com um frescor insuspeito, próprio das noites que te convidam a não voltar cedo para casa, daquelas em que jogar conversa fora e tomar uma cerveja com os amigos era quase que imperativo.
Apesar do dia de trabalho na manhã seguinte que começaria cedo, como de costume, não seria um empecilho à diversão. Nunca fora e não seria então.
Separado, morando com os pais, num retorno quase obrigatório, pois não tinha para onde ir, a cabeça um tanto avoada, nada de reserva financeira, filhos pequenos que, no máximo choravam com a sua ausência na casa materna, também não tornariam aqueles dias de diversão merecida em algo enfadonho e monótono.
Assim funcionava o cérebro dele. E assim seria.
Mas era sábado, e se durante a semana a noite era criança, que diria num sábado...
Logo nos primeiros goles notou que não estava descendo redondo. Algo que não combinava. Um sentimento de estranheza num lugar mais que conhecido: o boteco de todo dia. Seus amigos de bebida pareciam meio estranhos, com vozes bizarras, causando-lhe como que um ruído incomodo a lhe causar desconforto.
Não conseguia acreditar que em pleno sábado poderia estar cansado e quisesse cama. Mas era assim que parecia, pois não conseguiu beber mais que dois ou três goles.
Quando se despediu já saindo, alguém protestara sem muita veemência que era cedo.
Entrou em casa e seus pais já iam se retirando para dormir. Pietro, que trabalhava em São Paulo, chegara havia pouco, e também sempre passava na casa dos pais para comer, antes de ir para a sua.
Neste dia pediu ao irmão que o ajudasse com sua calculadora nova. Queria aprender cálculos estatísticos e ninguém melhor que seu irmão. Apos o jantar pegaram o aparelho novo e espetacular, uma HP 12C e ficaram um bom tempo explorando e aprendendo com o manual.
Sentiu um aperto no peito. Como se uma mão enorme o estivesse apertando seu coração de uma forma que começou a lhe faltar o ar. Seguiu-se uma dor no mesmo local.
Apavorou-se. Nunca sentira nada igual. Nunca tivera problemas de saúde. Vinte e oito anos, havia quatro que se formara médico e agora sentia uma dor tal que o fez lembrar-se de uma figura num dos tantos livros que estudara, de um homem apoiando-se numa parede com a mão esquerda, a direita levada ao peito, e uma expressão de dor inesquecível. Sempre o admirara a perfeição com que o artista compusera a gravura. Anatomia de Netter. Dor precordial do infarto agudo do miocárdio.
E ali, na cozinha da casa de sua mãe, estava ele com uma dor que o fizera lembrar de imediato aquela figura. Não foi difícil, pois ela o acompanhava sempre, viva nos seus pensamentos de socorrista, sempre alerta para não deixar passar um diagnóstico tão fácil de se enxergar, mas não menos fácil de se não diagnosticar a tempo.
Pietro, seu irmão se apavorou. Foi orientado a ligar para a o serviço de ambulância.
Longos dez ou quinze minutos se passaram. E a dor ali, acompanhada de uma sensação de que lhe fosse o coração sair pela boca afora. Náuseas e tonturas.
Como moravam numa sobreloja, ainda foi necessário descer vários lances de escada.
Quando a ambulância chegou, o motorista não acreditava que era o “doutorzinho” que o acompanhava nas remoções de pacientes graves para o Hospital das Clínicas em São Paulo.
Saiu em disparada para a Santa Casa, lugar onde ele trabalhava e onde seria atendido.
Sentia-se desfalecer em alguns momentos. Deitado na maca do veiculo, as náuseas pioravam, mas não conseguia se sentar. Pietro com os olhos colados nele, como se esperasse sua morte a qualquer instante.
Chegaram ao pronto socorro e foi levado rapidamente para a sala de emergências.
Denis, seu colega de plantão também apavorou-se, pois era pediatra e pouco poderia fazer. Assim mesmo tentou fazer um  eletrocardiograma, mas o aparelho estava trancado em algum lugar inacessível, já que as chaves estavam na clausura com as freiras.
Já era quase meia noite quando chegaram ao outro hospital da cidade e foi levado para a  a emergência de pronto.
Enquanto rodavam o eletrocardiograma, o cardiologista, que morava ao lado do hospital foi acionado e em poucos minutos estava ao seu lado, segurando-lhe a mão.
- Eu não quero morrer...
- Você não vai morrer, não, meu caro!
Enquanto ouvia, via as luminárias do teto irem passando no seu campo de visão num ritmo que o fez se lembrar de quando viajava de carro com os pais e, com os olhos direcionados para o céu, via aquela sequencia de luzes cruzarem seu olhar como um caleidoscópio.
Então tudo apagou e virou silêncio e escuridão. Escuridão e silêncio. Mas nem um, nem outro eram opressores. Não sentiu medo, ansiedade, angústia.
Pelo contrario, tudo parecia lhe envolver de uma forma acolhedora, como jamais se sentira acolhido. Algo como uma redenção.
Sentiu-se leve, gozando de uma paz e harmonia até então desconhecidas.
Finalmente sua cabeça não tinha barulhos e sua ideias e pensamentos não lhe ferviam os miolos, nem lhe atormentava sua alma.
Era um estado redentor, de sublimação.
Sentiu que estava deitado, sem estar, pois, de fato, parecia não possuir corpo e uma tênue luz azulada o cercava. Parecia vir de trás e mais de baixo, mas pouco importava.
Registrou também duas presenças. Ambas donas de uma calma jamais vista e pareciam lhe sorrir, a despeito de não lhes ter visto suas feições.
Tomou o ar profundamente – parecem terem lhe orientado a que fizesse – uma, duas vezes e subitamente foi surpreendido pelos sons dos monitores.
Abriu os olhos e viu que estava na UTI. O cardiologista estava ao seu lado:
- Eu não te disse que você não ia morrer? – e sorriu revelando um alívio sincero.
Ficou ali por um longo tempo, olhando o teto, os aparelhos na cabeceira do seu leito, sem saber o que sentia realmente. O que tinha sido aquela experiência? Alucinação? Delírio?
Fora uma sensação de paz tão plena, tão profunda, tão acalentadora, que deu-lhe até uma vontade de voltar para lá.

Mas não dependia dele, e isto ele sabia. Sempre soube.