Senti
o ar sufocante. Cheiro de gente suada, amanhecida. Cheiro de tensão e medo no
ar. Eu respirava com medo. O medo.
Me
conduziam pelos braços. Eu não opunha resistência, mas ainda assim me
apertavam, não a ponto de doer. Só para eu saber que estava sendo conduzido.
Que não me esquecesse.
Fui
levado escada acima. As pessoas se exprimiam e, à medida em que eu ia passando,
me olhavam nos olhos. Cobrando, condoendo, desprezando.
O
terror foi se apossando de mim e eu não queira chegar até onde me conduziam.
Minhas pernas foram enfraquecendo, ao mesmo tempo que as mãos que me
sustentavam, empurravam meu corpo adiante.
O
murmúrio que era alto quando cheguei se transformara em silêncio. Ouvia o som
da respiração, hálitos de boca dormida, de boca amanhecida, de cigarro, de
cachaça.
Ela
jazia sobre a cama de casal e o sangue empapava os lençóis.
Entrei
em pânico. Apesar de eu ter certeza de que aquilo nada tinha a ver comigo,
comecei a me perguntar o que eu teria feito.
Tudo
claro. Ela estava morta sobre a cama. Os olhos entreabertos, a boca
discretamente aberta e um fio de saliva que escorreu pelo canto da boca, se
transformara num fio branco.
Gritei.
Berrei. Urrei. Perguntando aos brados de desespero o que tinha acontecido e ela
da cama me olhava com olhar de censura.
E
quanto mais eu gritava, mais ela me fitava e perguntava porque eu tinha feito
aquilo, como tinha sido capaz daquilo.
Agora,
ajoelhado ao lado do seu corpo eu lhe dizia que nada tinha feito, que de jeito
nenhum, que eu a amava, que jamais eu sequer tinha pensado em erguer um dedo;
nunca; impossível.
Acordei
suado e o quarto me sufocava.
A
imagem daquele corpo tão belo e cheio de vida, jazendo na cama do hotel não me
deixaria jamais.
Quando Oscar bateu à porta e eu abri, me
deparei com um homem destruído. Ele não precisou falar nada para que eu visse a
destruição. Segurando o velho chapéu de feltro com as duas mãos, olhou-me de
soslaio e cabisbaixo dirigiu-se à poltrona da sala e deixou-se desabar.
Fiquei
esperando; senti que era grave, mas não fazia ideia do que poderia ser.
Ele
era um homem enorme, falante, loiro e de olhos azuis, com um sotaque carregado.
Delegado Oscar. Assumira o cargo muito antes da minha chegada.
Quando,
de voz embargada, me disse que eu teria de ir com ele para fazer um exame
cadavérico eu me sentei no sofá. Minhas pernas amoleceram.
-
É doutorzinho, hoje é o cadáver da minha princesa que precisa do seu exame. –
tinha os olhos vermelhos e as pálpebras inchadas. Suas mãos tremiam.
A
exclamação que soltei me assustou e quase não consegui controlar os meus
tremores. Tive uma violenta náusea e meus intestinos deram nós que me queimavam
a barriga.
Naquele
exato momento eu tive noção do quanto longe de tudo e de todos eu tinha ido
parar. Até então me orgulhava de ser o único médico da cidade, querido por
todos, ainda que com alguma desconfiança.
O
pequeno hotel de dois andares, feito em madeira e pintado com uma cor entre
marrom e vermelho, destacava-se na paisagem da pequena cidade. Pertencia a
Oscar e seus quatro filhos tocavam o negócio.
Duas
filhas e dois rapazes, sendo Marcia a mais nova.
Marcia
tivera um casamento conturbado, pois seu marido era doente de ciúmes.
Oscar,
que era um sujeito de pavio curto, sem muita paciência para conversa, passara
por um purgatório, ao se conter para não quebrar uns ossos do genro, quando
este maltratava sua princesa.
Até
que um dia, em meio a uma discussão, Marcia levou um soco no rosto, momentos
antes do seu pai cruzar a porta da entrada do hotel. Ao se deparar com a filha
chorando baixinho, caída ao lado de uma das mesas do refeitório, ele foi até
ela e a pegou ternamente pelos braços, sentou-a numa das cadeiras e lhe disse
baixinho o que ia acontecer.
Pegou
o rapaz pelo colarinho e o puxou até a porta de entrada, uma porta comum, que
tinha uma escada de três degraus até o nível da rua, que era de terra e não
tinha calçada. Foi atirado como num desenho animado e voou até o chão de terra
vermelha, levantando uma nuvem de pó vermelho quando bateu no chão.
A
cidade acompanhou à distância e em silêncio, constatando algo que muitos já se
surpreendiam de ainda não ter acontecido.
Ele
ficou ali, atordoado, enquanto alguns amigos de bar se aproximavam, para tentar
coloca-lo em pé e leva-lo dali. Poucos minutos depois voaram pelo mesmo trajeto
duas malas que se abriram ao bater no chão.
Nestor
foi embora da cidade no mesmo dia, sem deixar rastro.
Quando
cheguei no lugar e assumi o posto no pequeno hospital, esta história já não
rendia comentários e a ouvi numa tarde de sábado em que fora convidado a participar
de uma mesa de baralho, o que acabou se tornando um hábito e quebrou o gelo com
os locais. Ouvi do próprio Oscar.
De
início eu corei como um peru, porque sempre que podia eu me aproximava
discretamente dela, já que parecia ter recíproca na minha atitude.
Num
baile ela me ensinou a dançar as danças típicas do sul e no final da noite nos
despedimos formalmente, já que os irmãos não desgrudavam, mas tudo na maior
cordialidade.
Ainda
levou algumas semanas para eu começar a me aproximar novamente. Ela ajudava a
servir, cozinhava, arrumava os quartos, dava ordem aos empregados.
Eu
começara a sonhar com ela, de olhos abertos.
Tinha
a pele morena e firme, seios arredondados e empinados, cintura fina e coxas
roliças, bem torneadas. Não havia nada igual naquele fim de mundo. Uma beleza
típica, genuína. Um sorriso cativante, sensual. A voz baixa e meio rouca. Olhos
pretos.
Eu
acordava suado e as noites pareciam intermináveis.
Numa
ocasião, pouco depois da meia noite, Oscar me buscou em casa para atender um
ferido no hospital, resultado de uma briga de faca na zona de meretrício, que
ficava nos arredores da cidade, numa distancia em que não cansasse muito a
freguesia para chegar lá, mas suficientemente distante para desestimular
qualquer esposa cismada que, por ventura, quisesse dar algum flagrante.
Saí
do hospital perto das duas horas da madrugada, morto de fome e Oscar parece ter
adivinhado. Parou diante do hotel e me convidou para entrar, dizendo que tinha
pão feito em casa e carne assada com batatas.
Entramos
na cozinha e o fogão de lenha ainda guardava algum calor.
Quando
começamos a comer ela entrou no refeitório. O pai se surpreendeu, mas ela disse
que tinha ouvido barulho e só viera saber que tinha chegado.
Estava
linda, com os cabelos longos algo desgrenhados, mas que não conseguiam ficar
desarrumados por muito tempo porque eram muito lisos e logo se alinhavam,
trajava uma calça de algodão e uma camiseta folgada. Estava sem sutiã, e seus
mamilos brincavam de aparecer sob o tecido delicado.
Mal
consegui terminar meu lanche e me despedi, tomando o rumo da rua. Ela me
acompanhou para trancar a porta e pude sentir aquele seu cheiro de pele
adocicado, misturado com uma lavanda qualquer e não consegui falar nada além de
um boa noite. Ela me reteve por uns instantes, na pequena antessala que
separava a grande sala de jantar da porta.
Eu
não tive muito tempo. Ela me segurou o antebraço e ficando na ponta dos pés me
beijou na boca suavemente, seus lábios úmidos e carnosos não me dando tempo de
pensar, roubando minha respiração, tirando meus pés do chão. Minha cabeça
suspensa em alguma nuvem distante e meu coração batendo sem compasso, parecendo
pular do peito.
Quando
ela me soltou, abri os olhos e vi um sorriso que até então desconhecia. O
desejo estampado na pele. Eu não sabia o que fazer. Ela me virou na direção da
rua me desejando boa-noite como uma boa menina.
Fui
para casa tropeçando na felicidade e como que respirando pétalas de flores
coloridas a iluminarem a madrugada.
Demorou
para que o dia chegasse. Mantínhamos tudo em segredo. Nossos flertes, trocas de
olhar, suspiros. Quando finalmente tivemos oportunidade, mal tivemos tempo de
falar. Na verdade fomos falar alguma coisa após nosso cansaço não permitir mais
que isso: falar. Eu tinha me encontrado. Estava no meu oásis. A caminhada havia
cessado, a busca chegara ao fim.
Naquele
domingo a cidade estava toda reunida em torno da igreja, festejando São
Sebastião, padroeiro da cidade.
Fui
para casa esperando que ninguém tivesse visto e ela chegou instantes depois.
Combinamos
de voltar também separados. Ela saiu primeiro. Dei alguns minutos e saí também.
Me infiltrei na multidão procurando por ela e a vi ao lado do pai, pálida e
trêmula. Tivessem descoberto alguma coisa eu já a pediria em casamento ali
mesmo. Eu estava feliz e não conseguia esconder, enquanto ela me olhava
aterrorizada, até que percebi que me sinalizava para olhar no rumo de uma porta
lateral da igreja, e lá estava um desconhecido, impassível e me encarando.
Olhava com ódio para mim. Deduzi que só podia ser o tal Nestor. Cheio de
confiança, fui em direção a ela e ao pai, ao que ela veio ao meu encontro e me
suplicou para ficar quieto, na minha, pois eu não fazia ideia de quem era seu
ex-marido. Estava de fato apavorada e não fui sensível para perceber.
Ele
a viu saindo de minha casa e a interpelou sem dizer palavra. Só obstruiu sua
passagem e depois disso, deu-lhe as costas e voltou para a festa.
Naquela
noite foi assassinada.
Agora
aquele homem destruído pela tristeza e pela culpa de não ter conseguido
proteger a filha me olhava com desespero. Tinha o sangue da vingança nas mãos,
Nestor também estava morto a poucos metros do hotel. Mas seu desespero maior
era o de saber que a vingança de nada servia. Marcia não voltaria mais.
A
culpa se apossou de mim. Eu era o responsável pela morte dela e esperei do
fundo da minha alma que agora ele me matasse também. Tive certeza, pois o cano
de seu revolver ainda fumegava, e eu podia sentir. E seu olhar misturava ódio
com tristeza.
Fiquei
sentado, esperando.
Ao
cabo de alguns minutos ele se levantou e senti um frio na espinha, mas o que
ouvi foi:
-
Sinto muito fazer o doutorzinho passar por isso. Pensei que fosse virar o meu
genro. Eu via vocês dois apaixonadinhos, doutor e só me dava alegria. Mas essa
vida é malvada, doutor... Vamos lá trabalhar, vamos.
Colocou
o chapéu e saiu com passo firme, esperando que o seguisse.