Era uma noite de abril de céu limpo, com um frescor
insuspeito, próprio das noites que te convidam a não voltar cedo para casa,
daquelas em que jogar conversa fora e tomar uma cerveja com os amigos era quase
que imperativo.
Apesar do dia de trabalho na manhã seguinte que começaria
cedo, como de costume, não seria um empecilho à diversão. Nunca fora e não
seria então.
Separado, morando com os pais, num retorno quase
obrigatório, pois não tinha para onde ir, a cabeça um tanto avoada, nada de
reserva financeira, filhos pequenos que, no máximo choravam com a sua ausência
na casa materna, também não tornariam aqueles dias de diversão merecida em algo
enfadonho e monótono.
Assim funcionava o cérebro dele. E assim seria.
Mas era sábado, e se durante a semana a noite era criança,
que diria num sábado...
Logo nos primeiros goles notou que não estava descendo
redondo. Algo que não combinava. Um sentimento de estranheza num lugar mais que
conhecido: o boteco de todo dia. Seus amigos de bebida pareciam meio estranhos,
com vozes bizarras, causando-lhe como que um ruído incomodo a lhe causar desconforto.
Não conseguia acreditar que em pleno sábado poderia estar
cansado e quisesse cama. Mas era assim que parecia, pois não conseguiu beber
mais que dois ou três goles.
Quando se despediu já saindo, alguém protestara sem muita
veemência que era cedo.
Entrou em casa e seus pais já iam se retirando para dormir. Pietro,
que trabalhava em São Paulo, chegara havia pouco, e também sempre passava na
casa dos pais para comer, antes de ir para a sua.
Neste dia pediu ao irmão que o ajudasse com sua calculadora
nova. Queria aprender cálculos estatísticos e ninguém melhor que seu irmão.
Apos o jantar pegaram o aparelho novo e espetacular, uma HP 12C e ficaram um
bom tempo explorando e aprendendo com o manual.
Sentiu um aperto no peito. Como se uma mão enorme o
estivesse apertando seu coração de uma forma que começou a lhe faltar o ar.
Seguiu-se uma dor no mesmo local.
Apavorou-se. Nunca sentira nada igual. Nunca tivera
problemas de saúde. Vinte e oito anos, havia quatro que se formara médico e
agora sentia uma dor tal que o fez lembrar-se de uma figura num dos tantos
livros que estudara, de um homem apoiando-se numa parede com a mão esquerda, a
direita levada ao peito, e uma expressão de dor inesquecível. Sempre o admirara
a perfeição com que o artista compusera a gravura. Anatomia de Netter. Dor
precordial do infarto agudo do miocárdio.
E ali, na cozinha da casa de sua mãe, estava ele com uma dor
que o fizera lembrar de imediato aquela figura. Não foi difícil, pois ela o
acompanhava sempre, viva nos seus pensamentos de socorrista, sempre alerta para
não deixar passar um diagnóstico tão fácil de se enxergar, mas não menos fácil
de se não diagnosticar a tempo.
Pietro, seu irmão se apavorou. Foi orientado a ligar para a
o serviço de ambulância.
Longos dez ou quinze minutos se passaram. E a dor ali,
acompanhada de uma sensação de que lhe fosse o coração sair pela boca afora.
Náuseas e tonturas.
Como moravam numa sobreloja, ainda foi necessário descer
vários lances de escada.
Quando a ambulância chegou, o motorista não acreditava que
era o “doutorzinho” que o acompanhava nas remoções de pacientes graves para o
Hospital das Clínicas em São Paulo.
Saiu em disparada para a Santa Casa, lugar onde ele trabalhava
e onde seria atendido.
Sentia-se desfalecer em alguns momentos. Deitado na maca do
veiculo, as náuseas pioravam, mas não conseguia se sentar. Pietro com os olhos
colados nele, como se esperasse sua morte a qualquer instante.
Chegaram ao pronto socorro e foi levado rapidamente para a
sala de emergências.
Denis, seu colega de plantão também apavorou-se, pois era
pediatra e pouco poderia fazer. Assim mesmo tentou fazer um eletrocardiograma, mas o aparelho estava
trancado em algum lugar inacessível, já que as chaves estavam na clausura com
as freiras.
Já era quase meia noite quando chegaram ao outro hospital da
cidade e foi levado para a a emergência
de pronto.
Enquanto rodavam o eletrocardiograma, o cardiologista, que
morava ao lado do hospital foi acionado e em poucos minutos estava ao seu lado,
segurando-lhe a mão.
- Eu não quero morrer...
- Você não vai morrer, não, meu caro!
Enquanto ouvia, via as luminárias do teto irem passando no
seu campo de visão num ritmo que o fez se lembrar de quando viajava de carro
com os pais e, com os olhos direcionados para o céu, via aquela sequencia de
luzes cruzarem seu olhar como um caleidoscópio.
Então tudo apagou e virou silêncio e escuridão. Escuridão e
silêncio. Mas nem um, nem outro eram opressores. Não sentiu medo, ansiedade,
angústia.
Pelo contrario, tudo parecia lhe envolver de uma forma
acolhedora, como jamais se sentira acolhido. Algo como uma redenção.
Sentiu-se leve, gozando de uma paz e harmonia até então
desconhecidas.
Finalmente sua cabeça não tinha barulhos e sua ideias e
pensamentos não lhe ferviam os miolos, nem lhe atormentava sua alma.
Era um estado redentor, de sublimação.
Sentiu que estava deitado, sem estar, pois, de fato, parecia
não possuir corpo e uma tênue luz azulada o cercava. Parecia vir de trás e mais
de baixo, mas pouco importava.
Registrou também duas presenças. Ambas donas de uma calma
jamais vista e pareciam lhe sorrir, a despeito de não lhes ter visto suas
feições.
Tomou o ar profundamente – parecem terem lhe orientado a que
fizesse – uma, duas vezes e subitamente foi surpreendido pelos sons dos
monitores.
Abriu os olhos e viu que estava na UTI. O cardiologista
estava ao seu lado:
- Eu não te disse que você não ia morrer? – e sorriu
revelando um alívio sincero.
Ficou ali por um longo tempo, olhando o teto, os aparelhos
na cabeceira do seu leito, sem saber o que sentia realmente. O que tinha sido
aquela experiência? Alucinação? Delírio?
Fora uma sensação de paz tão plena, tão profunda, tão acalentadora,
que deu-lhe até uma vontade de voltar para lá.
Mas não dependia dele, e isto ele sabia. Sempre soube.
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