Quando parou na
esquina, colocou as sacolas no chão e mirou o alto da ladeira, colocando as
mãos na cintura, numa atitude de quem estuda o desafio. Já fora calçada com
paralelepípedos, os quais hoje jaziam abaixo do asfalto fervente, pois o sol
das onze ia a pino, devido ao horário de verão. A rua fazia esquina com a
Avenida Sumaré e era inclinada ao ponto de as calçadas serem quase que uma
sucessão de degraus.
Quando Aurora era
uma criança e brincava no Córrego Água Branca, que hoje dava lugar a avenida, e
onde havia a rua por onde iniciava a subida, ficava uma ravina de mato alto,
com um caminho no meio do mato que descia até a beira do regato. Ela assistia
os meninos pescarem lambaris até ficarem com seus samburás lotados, subiam
satisfeitos a trilha íngreme de volta para casa.
Aurora tinha uma
sombrinha, e por estar com as mãos ocupadas com as sacolas, colocou-a dentro de
uma delas e resolveu encarar a subida, tendo por proteção somente um lenço
atado à cabeça e a malha de linha que cobria as costas e os braços.
Ofegante, chegou
ao décimo degrau e colocou as sacolas no chão. Respiração arfante e com um
notável rubor facial, ajeitou o lenço e levantou novamente os pesos, um em cada
mão. Agora, por uns dez metros, seria somente uma calçada inclinada, sem degraus
para se apoiar. Ela bufou, lamentou em pensamento seu peso exagerado, que a
filha e o genro tanto lhe cobravam, sem falar no médico e no neto. As pernas
inchadas eram o de menos. Como o médico mesmo havia falado, andar faz bem. Está
certo que não precisava ser esta ladeira, pensou, contudo, ganhava bem umas
três quadras e no fim iria subir uma outra ladeira também, mais suave, mas
ladeira. No fim, dava no mesmo.
Alcançou a nova
leva de degraus e nestes havia, junto à mureta de uma casa, uma saliência que
saía dele, para abrigar o registro de água e que servi de banco e sem relutar,
ali se sentou para esperar a falta de ar amainar. O zumbido que lhe fazia
companhia há tantos anos, com a subida ficava mais alto, tanto que se alguém
lhe dirigisse a palavra antes de sua respiração e batimentos do coração
voltarem ao normal, não faria ideia do que lhe falavam.
Ajeitou o lenço,
balançou os lados da blusa para se ventilar e com um deles, enxugou o suor do
pescoço e atrás das orelhas. Vou chegar azeda em casa, logo pensou ao ver o
tecido molhado. Um fim de verão seco e abafado, que parecia ter imobilizado as
copas das árvores, as roseiras da casa do outro lado da rua, das folhas secas
caídas e imóveis no chão, dando a impressão que naquele momento ali fosse um canto
abandonado do universo, ou um canto dele por onde o vento não passava.
Contradizendo
esse abandono, logo abaixo, na avenida, motoristas apressados, em conduções de
última hora, se antecipavam às urgências e cedendo à pressa infinita, buzinando
por qualquer motivo, trazendo Aurora daquele devaneio breve, claudicante pelo
cansaço, mas não menos poético: o córrego, os meninos correndo com seus
samburás respingando a água cheirando a peixe, o canto dos pássaros.
Como que ciente
de que havia percorrido pouco mais que um terço daquele trecho mais íngreme,
ficou em pé, tomando pelas mãos as sacolas pesadas e degrau a degrau voltou ao
seu caminho. Pensou que o neto da Genoveva bem que podia estar ali em cima
brincando no gramado em frente a sua casa, assim ele poderia ajuda-la. Nada do
moleque. Àquela hora, nem moleque nem ninguém se arriscaria no sol.
Subiu lentamente
os degraus restantes daquela parte e a calçada inclinada lhe pediu um pouco
mais de persistência para atingir a derradeira sequência de degraus que a
conduziriam até o topo. Neste ponto as panturrilhas começaram a ferver. Ela
parou um tanto, não tinha relógio, mas disse a si própria que seria só mais um
minutinho. Respirou com calma até sentir que o ar lhe abrandasse os batimentos
no peito. O suor voltou forte, mas desta vez ela o ignorou, pois as pernas
deram um tempo na dor e ela aproveitou para retomar a marcha.
Degrau a degrau,
podia agora vislumbrar o fim daquela quadra mais acima, já que enxergava a casa
da Francisca, que ficava duas casas antes da esquina, mas por enquanto só o
telhado e a meia água da varanda, sua beira que parecia ser um braço da casa
lhe acenando com um chamado: isso mesmo! Venha logo que já está chegando! “Tá
bom, tô indo”- isso ela disse resfolegando.
Faltando poucos
metros até essa marca de sua subida, a casa da Francisca, companheira de
estripulias da infância, que também havia corrido por entre as árvores que
margeavam o córrego, que também havia brincado de casinha à sua sombra,
Genoveva parou e tirou a blusa, só então percebendo o quão quente estava seu
corpo: foi como se recebesse uma brisa fresca naquele dia sem vento algum.
Enrolou-a e a enfiou na sacola. O cansaço já lhe havia tirado um pouco de sua
graça e capricho, posto que a blusa ficou socada entre legumes e verduras, o
lenço gracioso na sua cabeça estava meio desenrolado, com uma ponta caída sobre
um dos ombros e mechas do cabelo caíam sobre sua testa. Isto assomado ao seu
rosto suado e vermelho, a respiração ruidosa e ofegante, davam-lhe um aspecto
de estar à beira de um colapso.
Se mais lá
embaixo havia pensado em dar um alô à sua amiga, assim que passasse por sua
casa, ali, agora, estava evidente que não era uma boa hora, pois ela não queria
papo com ninguém.
À medida que foi
se aproximando da esquina e o terreno foi se aplainando, seus passos
tornaram-se mais curtos e um pouco mais rápidos, e seu corpo mais inclinado
para a frente parecia lhe dar um impulso de última hora, como se de algum lugar
dentro dela surgisse um combustível extra, inesperado.
Chegou à esquina,
depositou as sacolas no chão e olhou para trás. A avenida lá embaixo não estava
visível e ela sorriu para si mesma: “essa ladeirinha nunca me parou”, e foi
embora com disposição renovada.
Enquanto Nestor,
um dos garotos daquela época em que se pescava no córrego a observava passar, disse a si mesmo: Essa
Aurora, vá entender, quase morre pra subir esse morro todo dia e não morre. Só
pra não passar em frente a casa do Juvenal.
Juvenal. O ex-marido
de quem ela se separara havia mais de trinta anos.
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