domingo, 28 de fevereiro de 2021

A quem importa?

 

­­Para sentir o ar fresco entrar, precisou abrir a janela e aí já veio logo o pedágio: barulho. Toda vez que fazia isso de abrir a janela tinha o mesmo e exato pensamento, de como o barulho perene e de mil origens permanecia indelével e inquestionável.

            Absoluto e tirano, porque muitas vezes, mesmo com a janela cerrada ele percutia os ouvidos como um martelinho maligno, que penetrava as orelhas e ia corroendo os tímpanos. Sabia que estava mais sensível, mas era impossível não contabilizar.

            Lixadeira, motocicleta, serra elétrica, caminhão de lixo, caminhão dando marcha a ré, as vozes animadas do fim de expediente, enlevadas pela cerveja. O vai-e-vem dos trens um pouco mais adiante, as sirenes, umas da polícia, outras de ambulâncias ou bombeiros, um casal brigando, uma criança chorando, latidos, martelos na oficina se aplicando em fazer o serviço, as risadas dos garotos do lava-rápido. Nas madrugadas, quando o silêncio pensava em ter vez, havia a conversa dos vigias do condomínio em frente, moradores de rua discutindo, gatos executando o ritual de acasalamento. Um motoqueiro mais apressado, buzinando loucamente, como a temer que alguém pulasse na sua frente, apesar da rua deserta. O ônibus, que parecendo se empolgar com a rua vazia passava a toda velocidade sobre o asfalto irregular, fazendo com que pneus e molejos iniciassem um festival de batuques desordenados, alucinados.

Sem falar num caminhão mais antigo, com turbo, que o motorista acelerava ao máximo antes de trocar a marcha e, ao pisar na embreagem, o quase apito do turbo parecia berrar de alegria. Não raro, um bebê começava a chorar a seguir, protestando por ser acordado daquela maneira.

Desesperançado, só fazia fechar a janela, a porta do banheiro, colocava-se na cama com a cabeça sob o travesseiro, na esperança que conseguisse apartar o mundo lá fora, mas este penetrava sorrateiramente pelos tecidos e o chamava de volta.

O sono viria como todo dia, com a fadiga, quando parecia apagar do mundo os ruídos insistentes.

Pegou um iogurte na geladeira e se sentou no sofá, com os olhos vidrados pelo cansaço, ainda sentindo o cheiro de vomito que parecia ter-lhe impregnado as narinas.

Verdade que depois disso o apetite voltara de uma forma voraz, mas por cautela ia começar com o iogurte somente. Estava ainda sob o efeito daquele momento desagradável, ou momentos; momentos desagradáveis que foram se sucedendo até vomitar.

O cansaço intenso tirava o freio de suas emoções, sabia, assim como sabia que não tinha escolha, então era só encarar a jornada, tentando manter o pensamento fixo na hora da saída. Sessenta, cinquenta e cinco, quarenta e oito, até que seriam minutos e pronto. Mas até chegar aí, a coisa evoluía de uma forma autônoma e   incontrolável.

A maioria das situações era conhecida, não só a ele, mas a toda a equipe. entretanto agora havia as mortes. Essas eram a grande novidade. Uma terrível novidade. Começaram a ser tantas, que ele se perguntava, atônito, de onde vinha tanta gente para morrer ali naquela UTI. Em alguns momentos havia três, quatro paradas cardíacas ao mesmo tempo. A equipe, atônita, batia cabeça. Primeiro porque muitos pacientes graves, parando ao mesmo tempo e, segundo, muitos recém formados. Muitos, a maioria. Médicos e enfermeiros recém-saídos da faculdade que só haviam manipulado bonecos. Todos desesperados, querendo salvar vidas, e a morte como que a rir de todos, sentada em algum ponto do corredor, fazendo troça e batendo com as mãos nos joelhos, sacudindo a cabeça de forma zombeteira, cínica. Mortes numa sucessão macabra, sem dar tempo de nada.

O necrotério com cadáveres amontoados, esperando pelos caixões que não chegavam. Muitos permaneciam horas nos leitos das enfermarias, porque as macas estavam ocupadas com defuntos anteriores. Lá fora, no pronto socorro, os pacientes graves aguardando que a fila andasse para poderem entrar.

E eles morrendo e morrendo.

Foi um mês assim, ou dois, não se lembrava bem, mas com certeza não seriam mais que três. O tempo andava meio misturado na sua cabeça. Dia e noite. Ontem e amanhã. Semana que vem. Mas morriam muitos. E as equipes, atônitas, acudiam da melhor forma. Até que um dia pararam de morrer assim, de enxurrada.

Continuaram morrendo, bastante ainda, mas menos. Tanto que o mundo foi se liberando para se movimentar mais. As pessoas começaram a se desinibir para sair de casa, as ruas começaram a encher de gente novamente.

Afinal, sem voltasse a morrer tanta gente assim de novo, tudo seria fechado.

A conta que ele fazia não fechava, pois ainda morriam muito. De cada dez que entravam ali, saíam vivos de dois a quatro, mas parecia ter ficado bom para quem estava lá fora, longe daquele burburinho das dores e tragédias. As notícias pareciam ter perdido a força, a graça. Afinal, a vida teria que continuar em algum momento, e já não era sem tempo que isso acontecesse.

Ali dentro da UTI, os barulhos eram outros, mas também intensos, ininterruptos, incessantes, persistentes, insistentes: alarmes dos ventiladores mecânicos, das bombas de infusão, dos aparelhos de hemodiálise, dos termômetros (esses bem mais baixos, quase inaudíveis), da rede de gases, dos monitores de pressão arterial, os telefones dos postos de enfermagem, as campainhas de entregas de materiais e medicamentos, das tosses, dos gemidos de dor, de solidão, de saudade dos filhos, dos pais, do marido, dos netos; os xingamentos ou verborragia dos que voltavam de longos períodos de sedação e eram acometidos por delírio. As risadas e conversas acaloradas dos integrantes das equipes, que, afinal ninguém era de ferro e haveria que se extravasar em algum momento. De fora, as sirenes que não paravam, lembravam a todos que a peste grassava com a intensidade de sempre, ainda que com pequenas variações.

Naquele dia lhe acontecera algo novo. Desde que acordara no meio da madrugada para atender uma intercorrência e não dormira mais, sentira seu corpo diferente, com uma tontura rondando de leve, como que a esperar o momento de dar-lhe o bote, fazendo com que desmaiasse e a boca meio amarga, um enjoo de fundo. E foi convivendo com isso durante o dia até que o vomito veio súbito e abundante.

Estava no quarto do homem de quarenta anos que precisava ser entubado e vinha lutando contra essa conduta desde que chegara ao leito, mas com o quadro piorando ele precisou intervir e conversou abertamente com o paciente: se ele não fosse entubado iria morrer com falta de ar. Com ar resignado e olhos lacrimejando, o paciente capitulou, mas pediu que antes se fizesse uma chamada de vídeo para a esposa, pois ele queira se despedir.

Nesse momento precisou sair correndo do quarto. Uma imensa vontade de cair no choro se apossou dele, mas se recusou a deixar transparecer, ou pelo menos tentou, pois seria o médico que entubar aquela pessoa e não poderia deixar passar essa imagem de vacilo e fraqueza. Que chorasse após o homem estar anestesiado, jamais naqueles momentos que antecederiam o procedimento.

Saiu pelo corredor e ao abrir a porta de emergência para a escada de incêndio, a golfada queimou sua garganta e ele lavou o chão com o vômito.

Alguém da enfermagem veio atrás e o socorreu, sentando-o no primeiro degrau e correu buscar uma toalha, retornando também com um copo d`água.

Descobriu que era fraco, mas não se culpou por isso. Sentiu-se vulnerável de um jeito que não havia experimentado antes. Sabia que era um limite. Capitulou.

Suportou as filas de cadáveres, a falta de conhecimento frente àquele terror, a falta de recursos, a falta de humanidade daqueles que faziam questão de dizer que aquela doença não passava de uma gripe, que não era nada demais. Suportava até ver seus colegas receitando fórmulas milagrosas e remédios de verminose para curar aquilo que não tinha cura, mas descobrira seu próprio ponto fraco: a despedida da família antes de ser entubado. Uma gota d’água naquele oceano represado. Repentinamente, seu corpo dava sinal de vida.

O gosto do bolo alimentar na sua boca, misturado ao ácido do estomago, que lhe fez também espirrar, queimando suas as narinas como fogo, os olhos lacrimejando; essa sensação, esse estado, isso representava talvez o que vinha sentindo por tudo. O gosto daquela verdade.

Uma catarse e uma revelação, de como o mundo cruel poderia ficar muito pior que imaginava.

O vírus como ferramenta da crueldade e da intolerância.

Nada a fazer. Levantou-se e foi colocar aquele tubo na garganta daquele homem. Ainda pensou quantos já tinham sido. Quantos haveriam de ser. Que importava, afinal? A quem importava, afinal?