Ele lembrou da mulher falando uma, duas vezes, sobre o caminho, que deveria seguir pela avenida e virar em tal rua à esquerda, seguir reto até não sei onde. “ e veja se não entre à direita, pelo amor, hein!”
De verdade mesmo, sinceramente, ele ficava até atordoado,
de tanto que ela falava sobre isso, sobre o caminho que era perigoso, para
tomar cuidado com aquele lugar horrível. Que fosse e voltasse logo, “pelo amor
de Deus”.
Fez um discretíssimo movimento com um dos cantos da
boca, num mini, super mini simulacro de sorriso irônico, tomou fôlego e baixou
o vidro, num esforço tamanho, imaginando se seria capaz de continuar apertando
o botão até o vidro baixar completamente.
- Boa tarde, senhor! – falou mansa e cordialmente o
rapaz de bermuda, chinelo de vão de dedo e uma camiseta enorme dos Lakers,
parecendo nova de tão reluzente., ao se aproximar do carro, bem próximo do
motorista, como se fosse lhe falar ao ouvido.
- Boa tarde... – som meio surdo, a voz difícil de sair,
enquanto olhava para o volante fixamente, mas o campo visual lhe permitindo
perceber o enorme fuzil nas mãos do seu interlocutor. Percebia também o amplo
sorriso, como que assinando abaixo da voz suave.
- Posso saber aonde o senhor vai, por favor?
Teve vontade de chorar, como uma criancinha. Sentiu um
frio na barriga, achando que fosse sujar as calças ali mesmo, dentro do carro.
Agora já podia contar mais uns cinco homens no seu
campo de visão, além de uma escopeta e outro fuzil. Eram dez olhos fixos nele,
todos aguardando uma resposta.
A rua fora se estreitando. De uma rua apertada para
trânsito de duas mãos, com um ou outro carro estacionado, passou a uma só
pista, às vezes com um carro velho estacionado sobre a calçada precária, lixo
pelas guias, não um exagero, mas sujo. Gambiarras para todo lado, formando
emaranhados sem solução, pendurados nos postes, cruzando as ruelas. Aqui e ali
vizinhos conversando com as cadeiras na via, apoiando os pés nas calçadas.
No ponto em que fora parado, formava-se um largo, como
se a viela tivesse tomado um fôlego. Um tanque de lavar roupas, um varal, uma
bicicleta velha, uma moto de pequena cilindrada, com um pequeno baú na garupa.
Agora pensava na mulher como algo distante e
imaginário – “será que ela existe mesmo? Será que ela falou comigo mesmo?
Será...”
Toc-toc – ouviu o som metálico do cano da arma bater
suavemente no vidro duas vezes, levando um susto, ainda que tenha sido quase
imperceptível a reação.
Olhou para o rapaz, sem largar o volante:
- Desculpe! Estou indo levar um presente de
aniversário para a minha afilhada. – Ao ouvir a sua voz, sentiu-se o ser mais
desprezível do mundo. Como alguém iria acreditar numa besteira dessas? Como?
Viu o rapaz erguer as sobrancelhas e olhar para o lado, na direção de um homem
que ocupava uma cadeira próximo a uma porta aberta, que abria para a calçada, e
este também tinha os olhos fixos em si. Manipulava alguma coisa nas mãos,
miúda, como um cigarro de palha, talvez.
- Presente de aniversário?
- Isso, amanhã vai ser aniversário dela, mas eu e
minha mulher não vamos poder ir lá, então eu estou indo levar.
- Sei – olhava para o motorista e para o homem sentado
na calçada, uns nove, dez metros adiante da cena – e onde está o presente,
senhor? Só fale. Continue assim como está.
- No banco de trás.
- Posso ver, por favor?
Imediatamente destravou a porta, o rapaz abriu, pegou
o pacote embrulhado para presente nas mãos, deu uma leve balançada, colocou de
volta, fechou a porta do automóvel. Todos os olhares convergiam para ele, podia
sentir todos, como setas cutucando sua pele.
Pensou na mulher novamente. Pensou nos filhos. Não
havia pensado nela es até o momento, como se estivesse adiando seus momentos
finais. O frio na barriga se transformara em cólica e agora também estava
nauseado. Um fio gelado de suor desceu pela nuca. O terror inicial parecia ter
se atenuado, sendo substituído por uma sensação de frio e indiferença, fazendo
com que o mundo lhe parecesse mais distante, inatingível.
Ainda lembrou do trabalho, da areia na praia queimando
seus pés, do cachorro-quente na frente do escritório, de sua filha mais velha
fazendo um penteado especial no seu cabelo, quando chegava cansado em casa e ela
vinha com posses e direitos sobre sua cabeça, do alto de sua tenra idade, ou
então de seu filho querendo lhe explicar porque os tubarões eram importantes
para o equilíbrio da natureza.
- Senhor?
Sem conseguir responder, ele somente olhou para o dono
do fuzil, com os olhos algo vidrados, a boca entreaberta, as mãos quase
desabando do volante.
- Qual é o endereço da sua afilhada?
Ele não entendeu de pronto. Achou que estivessem de
gozação com ele, soltando um som súbito, meio soluço, meio risada.
- Endereço – conseguiu falar – o endereço da minha...
ah, está aqui no aplicativo – e apontando o celular que estava preso ao suporte
no painel, leu o destino gravado.
- Muito bem. Agora o senhor vai embora, devagar, com
os vidro abaixado, sempre em frente, certo? Sempre em frente! Não para em lugar
nenhum. Não fala com ninguém. Só vai embora. E não volta mais, ok?
Ele não percebeu de pronto a ordem que lhe foi dada.
Ainda ficou ali, olhando para os lados. Aqueles rostos olhando para ele,
inexpressivos, sem esperança, sem surpresas.
Pensou que seria morto pelas costas, que o seu carro
seria transformado numa peneira e sua família jamais saberia onde ele fora
parar, afinal.
Engatou a marcha e saiu lentamente. As pernas tremiam
muito e as mãos molhadas pareciam não conseguir segurar a direção com firmeza.
- ABAIXA OS VIDRO PORRA!!
Ouviu o grito como um tapa nos ouvidos. Fora a única
coisa rude que lhe falaram desde que parou o carro e não parecia ter sido a voz
do rapaz gentil, mas merecera a bronca, pensou.
Conforme foi ganhando distância, o pensamento de morte
foi perdendo para o pensamento de não morte e foi dominado por imensa vontade
de chorar e gritar, mas conteve o quanto pode, deixando escapar lágrimas
abundantes, e soluços também.
Chegou a uma avenida e aterrorizou-se ao perceber que
não sabia que rumo tomar. Se fosse para o lado errado, poderia ser morto pelos
ocupantes daquela moto lá do beco, que o estava acompanhando.
Estava tudo bem. A avenida era conhecida. Era quela
que a sua mulher havia recomendado para não sair pela lateral como ele fizera.
A confiança cresceu um pouco mais.
Ao chegar ao endereço para entregar o presente, encostou
junto ao meio-fio e desligou o carro e a moto com o baú na garupa, ocupada por
dois homens, passou lentamente por ele, fez meia volta e desapareceu do seu
campo de visão.
Tomou um susto com o celular tocando, mas deu um riso
largo ao ver a foto da esposa na tela do aparelho. Atendeu dando risada. Como
há muito não fazia.
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