Theodoro
Ele gostava de ler o jornal na mesma sequência,
começando pelo obituário, depois os classificados e o que mais o detinha era a
página de esportes. Como a fila estava longa e naquele horário a
rodoviária estava apinhada de gente, Theodoro fazia uma figura curiosa, no
mínimo, tentando ler seu jornal em pé, no meio da multidão que lotava as
plataformas de embarque, se esforçando para não ser indelicado com alguém, ao
mesmo tempo em que se esforçava para manter o noticioso aberto o suficiente
para que conseguisse ler.
Os ônibus encostavam em diagonal, sobrando um
estreito para embarcar as bagagens no porta-malas e assim as filas se formavam
na frente dos veículos, invadindo o salão interno do estabelecimento, onde
estavam os guichês das empresas e algumas lojas, dois bares.
Theodoro pegava o ônibus diariamente para a
capital. A mulher e os filhos ficavam e Atibaia. Ela era professora, dinâmica,
respeitada pelos colegas, tida por amigos e parentes como a conselheira, pessoa
de pé no chão, sempre com uma palavra de apoio ou orientação a quem quer que
precisasse.
Exceção feita a ele, que era meio refratário a
conselhos, dicas, opiniões. Melhor, era receptivo, desde que não contrariassem
as suas convicções. Amava Maria até pelo avesso. Amor incondicional, às vezes
possessivo. Não era à toa. Maria era linda, com um sorriso hipnotizante e um
par de olhos esverdeados, que em certos dias estavam mais para caramelo. Mas o
forte mesmo era a personalidade e inteligência. Enfim, quando Theodoro bebia
uns tragos a mais, Maria tomava posse do seu coração e aí ele não parava de
falar nela. Beber, aliás, com amigos ou somente aquela paradinha solitária no
bar entes de chegar em casa era uma coisa da qual ele gostava muito e não abria
mão.
Trabalhava muito, de sol a sol, como dizia, tudo
pela mulher e os filhos, mas que o deixassem relaxar no fim do dia, por favor.
Daí os problemas com Maria, que não estava para beber na mesma frequência e
intensidade que ele.
Era um homem bem apessoado. Não era belo, no
sentido da palavra, mas tinha um charme que cativava e a conversa fácil fluía
como água de nascente. Vestia-se bem, sempre com gravata, de terno ou com um
blazer combinando com a calça. Dizia que um homem que se prezasse tinha
obrigação de se vestir bem, ter seus sapatos brilhando e os cabelos impecáveis.
Vaidoso, usava perfumes e mantinha o penteado modelado com fixador, dividindo
os cabelos de lado e penteando para traz, formava um topete discreto. Cabelos
negros, sobrancelhas espessas e aparadas, raramente era visto com barba por
fazer. Sabia que Maria aprovava, mas sabia também que a linha que divisava o
ciúme era móvel, oscilando na dependência de coisas do qual não tinha controle.
Os humores da mulher, vai entender – dizia.
O ônibus encostou e apesar dos passageiros irem se
aproximando da porta que se abriria em instantes, Theodoro continuou a ler o
jornal, movendo-se devagar, encostando uma mão fechada que segurava o jornal
nas costas de alguém à sua frente, ou atrapalhando a passagem de outrem pelo
outro lado.
Não percebeu que alguns metros atrás de si estava
um homem a lhe observar.
Tinha o olhar fixo em Theodoro, como um predador,
sem piscar, parecendo até sem respirar. Esse homem não desviava o olhar por
nada. Até quando levou um esbarrão de um carregador da rodoviária, que vinha
com uma mala enorme e um saco amarrado com uma corda encardida, tentando
desviar das pessoas numa missão quase impossível de chegar ao porta-malas do
coletivo, abrindo caminho como um navio quebra-gelo no ártico, forçando a mala
na frente, gritando “licença aí, pessoal, que o carregador precisa trabalhar!
Licença aí, por favor!”.
Quando enfim entraram no ônibus com Theodoro já
acomodado com os olhos fixos no jornal, o homem que o observava passou por ele
e sentou-se mais ao fundo.
Quando terminou o jornal já estava entrando em São
Paulo, o que percebeu avistando a Vila Galvão. Estava ansioso com uma venda
difícil que deveria ser concluída naquele dia. Havia mais de um mês que vinha
tratando com o proprietário de um apartamento na avenida São Luiz, que era
muito meticuloso e sistemático. Exigia mil garantias e na última hora não
efetivava a venda. Já estava perdendo a paciência, mas o dono da imobiliária
fazia questão que Theodoro estivesse no negócio justamente por isso, por ser um
proprietário complicado. Theodoro tinha o jeito para lidar com gente assim. A
compensação viria na comissão, pois o imóvel era de valor elevado, situado num
dos mais valorizados na região.
Estava tenso, quase febril. A reunião seria ainda
pela manhã e estava confiante.
Ao descer do ônibus não percebeu que o observador
estava parado quando ele passou quase tocando seu ombro. O homem de aparência
oriental, tinha a mesma altura que ele, o porte físico muito parecido também,
além dos cabelos negros, bem penteados.
Theodoro passou, o outro deu uma tragada longa,
fitando-o pelas costas, enquanto se afastava em passos determinados a ir
encontrar seu cliente e fechar o negócio. Hoje iria comemorar com Maria e os
filhos. Teria um dinheiro extra para pagar as contas atrasadas e uma linda
bolsa para ela, quem sabe um casaco também.
Aliás, pensou também que uma venda dessas, pelo
menos três a quatro vezes por ano não faria mal. Poderia mudar de casa, talvez
comprar uma. Também um carro. As crianças adorariam passear no carro novo.
Saiu da rodoviária sonhando, quase falando consigo
mesmo em voz alta, conjecturando sobre vida nova e alguns luxos.
Chegou à plataforma do metrô sorrindo, em passos
apressados, enquanto em pensamento desfilava com a bela mulher e os meninos ao
redor da praça da matriz com seu bólido novo, impecável e brilhante.
Kobayashi, o homem que o observava, entrou
discretamente no mesmo vagão de Theodoro. Um exemplar do São Paulo Shimbun
embaixo do braço, que foi aberto logo que se sentou, de modo a obstruir sua
visão daquele a quem observava.
O metrô saiu quase lotado, em meio aos avisos para
se respeitar a faixa amarela das plataformas, cuidados com bolsas e mochilas,
atenção nas escadas rolantes, numa mistura de sons que, se alguém estivesse a
ouvir com os olhos fechados, teria certeza de que estava num lugar que vivia
sob a ameaça de diluir-se num caos sem utilidade ou propósito.
Maria
O
dia começava cedo para ela. Antes do marido sair do banheiro, o café dele e das
crianças estava servido. A casa naquela bagunça da manhã, camas por fazer,
toalhas de banho por secar, amontoadas no banheiro, a louça do jantar na pia.
Entretanto,
quando Theodoro saía do banheiro – ela percebia pelo cheiro do perfume – a mesa
estava posta e a casa em ordem. Tirava o humor dela sim, ter que fazer tudo
isso e ainda sair correndo para a escola, onde era professora do magistério e
orientadora educacional do estabelecimento, cargos que acumulara com trabalho
insano e muito estudo.
Tinha orgulho de ver os filhos bem
arrumados, bonitos, bons alunos e ter suas coisas em ordem. O marido ela ia
levando. Sentia raiva por ser muito sonhador, parecendo não ter um objetivo
definido, fixo, determinado. Aquele jeito de levar as coisas apaixonadamente,
com obstinação, quase obsessão para algo do momento em que tivesse focado ou
percebido uma oportunidade para uma vida melhor e mais abastada, com mais
recursos, e de um instante para outro se cansar da coisa, querer mudar de ares
e propósitos numa velocidade estonteante, de tirar o fôlego, sempre a
surpreendendo, não havendo espaço nem tempo para argumentos. Daí tantas
mudanças, desmonte de casa aqui para remontar acolá. Hoje em São Paulo, amanhã
em Minas, no outro em Curitiba, e assim foram tantas vezes que ela se cansou.
Quando se mudaram para Atibaia, terra natal de Maria, ela fincou o pé: “daqui
eu não saio mais”.
E assim foi. Perto de sua família, ou
de quem desta sobrou, seus amigos de infância e colégio, foi reconstruindo sua
identidade, que havia deixado espalhada por tantos lugares onde seu amor a
levara.
Certo era que Theodoro tinha sobre ela
um domínio. Aquele charme, aquela pegada, seu jeito de abraçar, seus beijos.
Além disso, o fato de ser tão amoroso com os filhos também pesava naquela
relação entre eles, carregada de cobranças subliminares, ciúmes contidos,
críticas silenciosas.
Irritava-se com o cheiro de bebida, com
a hora que chegava em casa, com a cabeça avoada com as finanças. Mas aí tinha o
carinho, os presentes fora de hora que a pegavam de surpresa, que apesar de
muitas vezes causarem aperto no orçamento, não deixavam de surpreender. A
gangorra entre o chão duro do dia-a-dia e o voo livre.
Levava a vida com aquele sorriso lindo,
dissimulando suas adversidades com uma energia invejável.
Colecionava um bom número de
admiradores. Profissional competente, com um número crescente de alunos a quem
formava e orientava; amiga fiel e comprometida, que não se furtava de um apoio
ou opinião por nada nesse mundo, sempre rodeada por gente que se sentia bem ao
seu lado.
Tentava de todas as maneiras acompanhar
o desenvolvimento dos filhos, cobrando deles seus deveres e incentivando seus
projetos. A molecada que circulava na sua casa a amava, sempre com aquele bom
humor e atenção.
Tentava do todas as formas se ajustar
dentro do orçamento apertado da família, pois Theodoro tinha um fixo pouco
atrativo na imobiliária, precisando se virar para vender e ela, professora do
estado, agora com mais um incremento pelo cargo de orientadora educacional, que
não era muito, mas qualquer algo mais que se assomasse ao faturamento da casa,
cairia como luva para pagar as muitas contas.
Apesar de saber que a vontade do marido
era trabalhar em São Paulo, sob o argumento de que lá as possibilidades de
ganho eram maiores que ali, ela se incomodava muito com a ausência permanente,
faltando o companheiro ali para discutir as coisas do cotidiano, dos filhos, da
escola deles, do trabalho dela, do trabalho dele.
Na maioria das vezes, só ficava sabendo
das coisas quando já estavam estabelecidas e acontecidas. Quando já eram
passado.
Reclamava com ele de todas as formas,
com indiretas ou em forma de lamentação, de reclamações, ou, nas poucas vezes
em que estavam sós, com belas e acaloradas discussões.
E isso lhe causava tristeza, pois se
via chata, inconveniente e intrometida.
Mas graças a Deus havia todo o resto:
filhos, amigos, parentes e alunos. E isso lhe tomava todo o tempo que precisava
para se sentir e perceber, lá no fundo, quem deveria corrigir a rota. Estaria
ali, de braços abertos, mas a vida seguia em frente.
Ele andava muito ansioso nos últimos
tempos, com um tal apartamento “de cinema”, na Avenida São Luiz, pertinho da
Praça Dom José Gaspar. Ela já tinha ouvido tantas vezes que decorara a história
toda. Vinha falando disso havia alguns meses, como vaga possibilidade, mas
entre uma quitinete aqui e um modesto apartamento ali, esse negócio foi tomando
forma e agora tinha corpo, com compromisso de compra e venda na iminência de
ser assinado.
Maria já tinha se desiludido tantas vezes
com todas as imensas e maravilhosas oportunidades que na última hora não
vingaram, que seu coração parecia ter se revestido com uma camada de gelo
quando entrava nessa seara. Até evitava avançar na conversa. Proibia a si
própria de fantasiar e sonhar com qualquer possibilidade que surgisse e firmara
consigo um contrato de jamais se iludir com histórias que pudessem se tornar
estórias no seu final.
E naqueles últimos dias a excitação de
Theodoro estava tão grande que ela se preocupou. Parecia até que ele estava
possuído ou coisa do gênero.
Saíra naquela manhã falando que
voltaria com umas cervejas para comemorar em casa, mas fato é que voltou com a
cara amarrada, irado. Chegou jogando a maleta num canto, sentando-se com uma
pose de cansaço, falando sem parar num imprevisto que ocorrera, impedindo a
concretização da venda.
Estava tão perto, meu Deus, falou em
tom de desespero para ela.
- Vá com calma, Theodoro! Assim você
passa mal. Tem uma sopa aqui, você não quer? Aí você toma um banho e descansa.
O que ele queria mesmo era uma boa dose
de uísque, mas não ia abusar da sorte com a mulher. Comemoraria quando aquele
comprador assinasse o contrato.
As crianças já dormiam. Só o mais velho
ainda estava na aula. Estudava à noite e chegaria mais tarde, como sempre.
Entrou no único banheiro da casa e
tomou seu banho bem quente, deixando a água escorrer, pedindo que ela levasse
embora os maus olhados que estivessem emperrando seus negócios.
Ao sair do banheiro e abrir a porta do
quarto, abriu um sorriso ao ver a mulher lendo de lado na cama, com aquela
camisola rendada que o deixava louco.
Ela retribuiu o sorriso sem olhar para
ele, pois tinha ciência do domínio da situação. Theodoro trancou a porta do
quarto abandonando tudo que o aborrecera durante o dia.
As fotografias
O senhor Kobayashi ficou muito
satisfeito em ouvir claramente qual poltrona Theodoro havia comprado e, mais
satisfeito ficou quando viu que a poltrona ao lado dele estava vaga e teve
oportunidade de sentar-se ao lado dele.
A princípio ficou calado e totalmente
atento ao que ocorria fora do ônibus, deixando Theodoro com seus pensamentos,
posto que sua cara estava para poucos amigos, mas contando com mais um pouco de
sorte, viu que todo o mau humor do vizinho era devido a uma venda de um
apartamento que já se arrastava por tempo suficiente para esgotar a paciência
do monge mais experiente e evoluído.
Como Theodoro era do tipo que precisava
conversar, o senhor Kobayashi teve a oportunidade de se apresentar, e, com
interesse, ouvir os argumentos do homem.
A viagem de volta a Atibaia passou
rápido, pois a conversa foi agradável e Theodoro saiu do ônibus satisfeito por
ter conhecido um homem que também ia diariamente a São Paulo, e mais que tudo,
era inteligente e educado. Haveria de melhorar, com certeza, foi o que pensou
chegando em casa. Percebeu até que sua ansiedade o tinha levado direto até
Maria, tirando de sua frente o costume de dar uma paradinha no bar para um
conhaque.
No dia seguinte, ao chegar na
plataforma de embarque, encontrou um sorridente senhor Kobayashi e juntos
passaram mais uma hora conversando. Aquele era o grande dia, mais esperado que
tudo.
No final da tarde, o senhor Kobayashi
espreitou um exultante Theodoro, que estava no telefone a falar sobre o sucesso
do negócio, fazendo declarações de amor e prometendo que agora tudo iria
melhorar.
Quando desligou, Theodoro estranhou um
pouco que o homem estivesse ali, pois estava atrasado em quase uma hora.
- Você estava me esperando? – perguntou
ao senhor Kobayashi, que ficou meio sem graça e respondeu de chofre, que
coincidentemente ele, Kobayashi, havia perdido um grande negócio e estava um pouco
chateado e se Theodoro não se importasse, ele gostaria muito de comemorar o
sucesso do grande amigo.
- Vamos tomar uns tragos e comer
excelente comida japonesa?
Theodoro olhou para as próprias mãos,
onde segurava a maleta numa e na outra uma sacola de supermercado com algumas
latas de cerveja que ele havia comprado para comemorar com Maria, mesmo sabendo
que ela preferia não beber.
Mas era um dia especial. Aceitou o
convite e quando desembarcaram em Atibaia foram direto a um restaurante que
servia excelente comida japonesa. Era quinta feira e as poucas mesas estavam
quase todas ocupadas, mas surgiu uma com dois lugares e ali os recém amigos se
aportaram e saíram tarde. Tarde e com as pernas trançando.
Theodoro chegou em casa procurando
fazer o menor barulho possível, ainda que fosse um pouco complicado, com
aquelas latas de cerveja e a maleta. Ao entrar na sala viu a luz do quarto
acesa e Maria lendo. Assim que ele se mexeu na sala, ela apagou a luz sem dizer
palavra.
Tomou conta dele um sentimento ambíguo
de culpa e arrependimento de um lado, e de outro uma vontade de falar para ela
que tinha sido somente uma comemoração com um amigo, afinal ele tinha
finalmente conseguido fechar um grande negócio, talvez o maior se sua vida,
então, que ela fizesse o favor de o deixar em paz.
Ficou uns dias sem avistar o senhor
Kobayashi, até que numa manhã lá estava ele, mais sisudo que o normal. Parecia
um pouco agitado também, o que causava estranheza.
Compraram os bilhetes juntos e foram
conversando.
Numa determinada altura, Kobayashi
confessa que está numa situação muito difícil e que precisa da ajuda de
Theodoro.
Era muito importante que ele fosse com
Kobayashi na sua casa e fizessem umas fotos. Simplesmente isso. Eram somente
umas fotos e nada mais.
Algo surpreso, pensativo, Theodoro
acenou um não com o indicador em riste.
Nesse momento Kobayashi chegou ao
desespero, mostrando os olhos inundados e as mãos tremulas.
Quando Theodoro chegou em casa naquela
tarde, encontrou a esposa preparando umas aulas, o que ela sempre fazia na mesa
de jantar, que dividia espaço com o sofá e a televisão.
Ela ainda estava magoada com o ocorrido
alguns dias antes, pois fizera um prato especial e pusera os filhos esperando
para jantarem todos juntos. Uma frustração a mais para os meninos e para ela.
Ele chegou, foi ao banheiro e retornou
à sala. O filho mais velho estava assistindo tevê, Maria entretida com a
matéria que apresentaria no dia seguinte. Os mais novo no tapete, brincando com
carrinhos e bonecos.
Maria percebeu que ele estava
diferente. Tinha algo ali que não se encaixava. Esperou. Ele não era de
aguentar muito tempo sem falar.
- Aconteceu uma coisa estranha comigo
hoje. Sabe aquele sujeito que conheci no ônibus pra São Paulo? Então...
Maria passou de uma atitude algo
indiferente para uma feição séria, os olhos esverdeados fixos em Theodoro,
sentindo dominá-la uma sensação de intensa aflição e medo, conforme a história
progrediu.
O filho mais velho, também foi ficando
assustado, tanto pela história, quanto pela atitude da mãe.
E Theodoro foi ficando constrangido,
percebendo a gravidade de suas palavras, como se só agora os fatos a ela
ligados estivessem ganhando significado naquele momento e não antes, quando
aconteceram. Mas era artista em dissimular, e manteve uma atitude algo
zombeteira, como se estivesse testando a audiência.
Ao perceber o desespero de Kobayashi,
ficou muito preocupado, pedindo-lhe que se acalmasse, que sim ele faria as
fotos para o amigo. Quando chegaram em Atibaia, foram direto à casa de
Kobayashi, que ficava numa rua tranquila a algumas quadras da estação
rodoviária.
Lá chegando, uma casa modesta, antiga,
dessas com um jardim minúsculo e um alpendre idem, a porta de madeira com
verniz desgastado. Sentiu que a casa devia ficar fechada por muito tempo, pois
cheirava a mofo. Móveis antigos, envelhecidos, uma pequena mesa de fórmica com
quatro cadeiras, sendo que numa delas Theodoro se sentou. Ainda viu o
guarda-louças, combinando com a mesa e as cadeiras. Neste, uma prateleira
abaixo das portas superiores, envidraçada, que abrigava alguns copos que um dia
foram potes de geleia. Um pequeno vaso sem flores sobre o tampo.
Kobayashi lhe pediu que ficasse
tranquilo; acabaria logo.
Então ele amarrou as mãos de Theodoro
por trás da cadeira, assim como seus pés. Amarrou com firmeza, sem apertar os
punhos ou os tornozelos, mas sentiu que seria impossível soltar-se, caso
quisesse.
Rindo nervosamente, Theodoro perguntou
o que era aquilo, o que estava acontecendo. Um Kobayashi bem mais à vontade e
desenvolto, falou sorrindo que estava tudo ótimo e que já iria acabar. Só
faltava colocar a venda nos olhos.
Ter os olhos vendados foi a parte mais
fácil, talvez, pois naquela altura dos acontecimentos, nada haveria a ser
feito.
- COMO ASSIM, THEODORO??? COMO NADA A
SER FEITO??? - Maria gritou, quase estapeando a mesa, e só não o fez
pelas crianças, como se o grito já não as tivesse assustado.
Com os ombros encolhidos e a voz algo
hesitante, apesar dele já não querer continuar, forçou-se a continuar. Tinha
começado, agora era tarde.
- Daí eu ouvi o clique da máquina
algumas vezes, na minha frente, nos lados, atrás. Feito isso, ele destampou
meus olhos, me soltou da cadeira e eu vim embora.
Maria enlouqueceu. Não conseguia
aceitar que o marido tivesse um comportamento como aquele. Um sujeito
briguento, que já surrara gente por ciúmes, que já brigara tantas vezes quando
jogava futebol de várzea, diante de uma situação totalmente estranha e sem
fundamento como aquela, tivesse uma atitude tão passiva quanto aquela que ele
próprio estava narrando.
Chamou Theodoro no quarto. Ele foi, com
uma atitude defensiva, querendo se justificar.
- Theodoro, explica isso para mim. Está
muito esquisito. O que esse sujeito está querendo, fala, Theodoro, por favor?
Tem mais alguma coisa?
- Que é isso, Maria? Não tem nada de
mais. Eu só queria ver onde ele ia chegar.
- Theodoro, pelo amor de Deus me ouça:
isso não está certo, não tem cabimento. E você ainda concordar com isso. Nossa,
eu não sei o que pensar.
- O que você quer que eu faça? Que eu
vá lá e dê uma surra nele?
Dormiram sem trocar palavra.
No dia seguinte ele se levantou mais
cedo e foi para São Paulo sem tomar seu café. Na rodoviária não avistou
Kobayashi e agora já não sabia se o encontraria novamente.
Passou o dia com essa nova expectativa,
a par do fato de estar aguardando feliz que o cheque da comissão do apartamento
fosse compensado na sua conta bancária. Fez planos, organizou números, conferiu
tudo que ficaria pago, respirou fundo, com ar realizado.
No Terminal do Tietê avistou Kobayashi
na fila do guichê:
- Oi, Kobayashi. Preciso pegar aquele
filme com você.
- Ah, pois não. Mas é que está “no
foto” pra revelar. Kobayashi pegar amanhã, né? – Estava meio sem jeito, mas
solícito.
- Certo. Amanhã então.
Sentaram-se distantes um do outro. Não
trocaram olhares ou sorrisos, como acontecia anteriormente à sessão de fotos.
Em casa, quando chegou, sua atitude foi
a mesma, sem conversa, exceção feita às contas que havia feito, falando de tudo
que estaria resolvido e o que achava que poderiam fazer no futuro. Maria estava
satisfeita. Nada sobre o dia anterior, como se tivessem esquecido os fatos.
Teve uma noite agitada, sem conseguir
dormir um sono reparador. Acordou suado e indisposto. A caminho da rodoviária
pensou se encontraria o homem com as fotos e concluiu que não, pois chegaram
quando o comércio já estava com as portas fechadas.
Passou o dia com a sensação de
lentidão, como se a Terra estivesse girando mais devagar, só para atrasar os
relógios.
No fim do expediente, rumou para sua
condução de todo dia e não avistou que esperava ver. Ele não tinha ido
trabalhar? Como assim? Viajou incomodado, planejando ir à casa do homem quando
lá chegasse.
Ao descer do ônibus teve uma surpresa:
o senhor Kobayashi o estava esperando quase que junto à porta do ônibus, com um
sorriso discreto, olhando para baixo.
Retirou um envelope do bolso e entregou
a Theodoro, que o pegou e colocou no próprio bolso do paletó. Agradeceu e saiu
em direção à sua casa.
No caminho, parou num bar e pediu uma
cerveja gelada, sentando-se junto ao balcão. Deu um gole farto, sentindo a espuma
descer de forma refrescante, trazendo um alívio instantâneo.
Acendeu um cigarro e abriu o envelope
que estava no bolso.
Assim que observou as fotos, uma
mistura de excitação e medo percorreram seu corpo inteiro, como se tivessem
começado no peito e se espalhassem para a cabeça, braços e pernas. Tomou outro
gole, tragou o cigarro sem tirar os olhos daquele homem sentado e amarrado numa
cadeira, de olhos vendados, com a cabeça envergada para a frente.
Não conseguia se reconhecer ali. Não
era ele, era outro, pensou, apesar de tudo dizer que era ele próprio: os
cabelos, a roupa, o perfil do nariz parcialmente coberto pela venda. Ficou
surpreso com esse não reconhecimento. Formidável, pensou. Não parecia ser ele,
mas sabia que era. Formidável, falou em voz alta, sorrindo ao olhar para o
balconista que o fitava com olhar indiferente.
Chegou em casa com seu jeito zombeteiro
de sempre, e com um sorriso discreto, de canto de boca, ficou observando a
mulher e os filhos olhando as fotos.
Eram tão estranhas, com um quê de
absurdo e inacreditável.
Perguntaram sobre o filme. Perguntaram
se o homem que fizera as fotos ainda estava por aí.
Ele riu quando perguntaram. "Que
importa o filme?" - indagou, dando de ombros.
E riu sempre que contou sobre isso aos
netos e amigos, prestando atenção na reação das pessoas, parecendo se divertir
com isso, ou seja, com cada atitude de quem ouvia.
Guardou aqueles registros estranhos,
sem nexo, de algo que permaneceu inexplicável para sempre. Carregava como um
troféu do absurdo, um prêmio a uma ousadia incontestável.
Encontrava Kobayashi diariamente na
rodoviária ou no ônibus, mas jamais voltaram a se falar. Theodoro evitava
Kobayashi e este sempre tentava algum contato visual, com um sorriso pronto a
ser disparado, caso Theodoro cedesse.
Chegaram a ficar em assentos quase
vizinhos, mas o silêncio imposto por Theodoro prevaleceu todas as vezes.
E em todas as vezes Kobayashi sorria
tristonhamente, como que a pedir perdão.
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